sábado, 27 de março de 2010

As inconfidência da Edileuza ‘Maninha’ Medeiros

Na década de 70, toda garota tinha um Caderno de Confidências. Uma praga. Parecia até uma obrigação, ou uma espécie de rito de passagem: completados os 12 ou 13 anos, estava lá o Caderno, com uma capa cheia de figuras fantasiosas, marcas de beijos e um monte de páginas que mesclavam declarações de colegas e revelações íntimas de todo tipo.

Edileuza Medeiros não fugia à regra.

Antes de seguir em frente, uma explicação: Edileuza é o nome da Maninha. Muito popular especialmente pelas muitas estripulias que fazia, talvez a própria Edileuza esquecesse o nome de batismo. Era Maninha e assim segue sendo. Acabou!

Pois bem: a Maninha também tinha seu Caderno de Confidências, preenchido ora com contrição, ora entre gargalhadas. Preenchia páginas e páginas dos Cadernos das colegas. Em muitas aulas no Ginásio Felinto Rego, enquanto o professor ou professora enchia o quadro de textos, as meninas enchiam as páginas dos Cadernos de Confidências, suspirando.

Ao invés de fórmulas matemática, regras gramaticais ou pontos cardeais, estavam lá os registros de amores platônicos espalhados aos quatro ventos, de desejos ainda por realizar e até poemas que o amado nunca veria.

Cada menina um Caderno. E em cada Caderno um mundo de sentimentos – desejo, ódio, paixão – louca paixão, como costumam ser as paixões adolescentes. Por isso mesmo, o grande desejo dos meninos era conseguir por as mãos em um desses cadernos: era o mesmo que desvendar o íntimo da garota. E, mais que tudo, era uma farra, espalhando-se e fazendo galhofa com os segredos descobertos.

Pensando bem, uma das poucas que não tinha o tal Caderno de Confidência era a Lúcia Nery.
Lucinha era uma coisa à parte. Em termos cronológicos, tinha um ano a mais que a média da sua turma – na maturidade, eram uns dois ou três anos a mais o que, aos 14 ou 15, equivale a um século. Lúcia lia muito, era centrada, racional, informada, com boa conversa intelectual. Por isso mesmo, não andava escrevendo Cadernos de Confidências; preferia longos textos reflexivos que mostrava para quase ninguém. No máximo, conversava com os colegas de séries adiantadas – ou recebia as investidas de jovens professores que se encantavam com o nível da moça que depois enveredou pela gestão de negócios e acabou diretora de uma rede de supermercados.

Na turma de Ginásio, o papo da Lucinha era com o Aderson Soares Neto, sempre com um tema literário na ponta da língua; o Osmir Pierot, desde pequeno descolado e provocante; e o Fenelon Rocha, meio retraído mas sempre informado sobre muito do que se passava no mundo. O que se diz é que a Lucinha fazia suspirar turmas inteiras, encantadas com a beleza e uma certa superioridade da moça. Mas, até onde se sabe, nunca escutou tais suspiros – talvez porque não tivesse ouvidos para tais coisas de meninos imaturos.

Com esse perfil, a Lúcia Nery era quase um ET. A Maninha, não: era normal, de carne e osso, metida em muitas folias e todas as encrencas – boa parte criada por ela mesma. Era (e é), como se diz, da galera. E tinha lá seu Caderno de Confidências.

Ria dos próprios escritos. E ria mais ainda das confidências registradas pelas colegas. O melhor de tudo era que os tais Cadernos tornavam as aulas agradáveis: enquanto o professor discorria sobre sei lá o que, Maninha estava contrita, debruçada sobre o Caderno, escrevendo sem parar. Parecia uma aluna dedicada. Mas era apenas uma garota interessada em viver o que a vida lhe oferecia de melhor.

No período de Ginásio, foi uma das recordistas de suspensões. Apesar das constantes punições, tinha uma relação amistosa com Dr. Antonio Rocha. De tanto repetir para Maninha “Mocinha, pra casa com dez dias de suspensão”, Dr. Antonio já o fazia com um certo riso encoberto pela cara série e o ar firme de quem manda. Ela já tomava tudo na galhofa. Não ria na cara do diretor, mas gargalhava tão logo o perdia de vista. E seguia para casa, para mais um período de “férias”.

O sentimento de Maminha em relação ao Dr. Antonio era um misto de medo e diversão. Às vezes, de desafio. Fumava no colégio, em geral no banheiro, dividindo a bagana com algumas colegas quase tão afoitas e apresentadinhas. Dançava sobre as carteiras. Comia dentro da sala de aula, quando isso era proibido. E alfinetava cada professor com ironias infantis que deliciavam a turma e ruborizavam os mestres.

Uma vez, na aula de Técnicas de Educação para o Lar – é, havia isso no Ginásio, junto com Técnicas Comerciais, Técnicas Agrícolas e Técnicas Industriais – a Maninha resolveu assaltar a geladeira onde estavam guardadas as guloseimas produzidas nas práticas dos alunos. Pegou um pão e encheu de doce. Mal fechou a geladeira e ouviu os passos firmes do Dr. Antonio entrando na sala. Para não ser flagrada, não teve outra saída: enfiou todo o doce sanduíche na boca. E assim ficou por longos minutos, parada como uma estátua, muda e quase sem fôlego, até que o professor deixasse o ambiente. Dessa vez escapou.

Mas nem sempre foi assim.

Numa aula do professor Pedro Reis, Maninha foi chamada pelo mestre. Nem notou, e seguiu escrevendo. Claro, estava dedicada ao Caderno de Confidências. Era como se não existisse o mundo, só as fantasias daquelas páginas. Pedro voltou a chamar a aluna e ela seguia escrevendo. Aproximou-se da carteira da Maninha e tomou o Caderno.

O confisco aconteceu exatamente no momento em que Dr. Antonio entrava na sala.
Desta vez não teve suspensão. Mas Dr. Antonio fez um comentário que se revelou profético:

– Essa aí não tem jeito. Vai ser o diploma mais bonito que o Ginásio vai ter: enquanto os outros passam 4 anos, ela vai ficar 8.

Dito e feito. Maninha quase não sai do Ginásio. Em compensação, quase não pára de se divertir.
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sexta-feira, 19 de março de 2010

Aventuras futebolísticas do Felipão do Estanhado

Antônio Rocha já foi um pouco de muita coisa.

Já empunhou uma batuta, dando ordem e ritmo aos desfiles de 7 de Setembro. Também comandou caravanas de alunos pelo Piauí afora e até mesmo à frente de um time de beatos. Estranho, né? Logo o Dr. Antonio, que nunca foi chegado a padres e a rezas.

Pois é verdade: ele se meteu numa Kombi com um tanto de gente – o padre José Gonzalez Alonso à frente – e se mandou para Salvador, ver de perto a posse de Dom Avelar como arcebispo primaz do Brasil. Ele não gostava de muitos padres, mas gostava muitos de uns poucos sacerdotes, entre eles o mesmo padre (agora bispo) José e Dom Avelar.

Sim, Antonio Rocha também sempre foi metido a fazer festas. Nos dias de hoje, seriam um promoter. As mangueiras do sítio da família, em União, são testemunhas vivas e podadas de tantas furupas regadas a batida de limão ou maracujá, feitas pelo próprio anfitrião.

Também foi dentista um montão de ano e professor a vida toda, até se aposentar de vez – por obra da vista curta – já passado dos 70 anos. Mas essas facetas são conhecidas: fazem parte do currículo oficial.

O que pouca gente sabe mesmo é que Dr. Antonio também enveredou pelos campos futebolístico, como técnico. Uma espécie de Felipão do Estanhado.

Rocha Júnior, o sexto filho da larga prole, lembra de uma grande partida em que Dr. Antonio colocou em prática os seus conhecimentos futebolísticos. Era inicio dos anos 1970, quanto ele convidou o filho para acompanhá-lo até Porto, quando União enfrentaria a seleção local.

A viagem começou no próprio domingo, dia do jogo, bem cedo da manhã. Era uma total integração: jogadores e torcida, todos juntinhos e apertados, seguiam sentados no piso da carroceria de um caminhão. Na boléia, o motorista e o meticuloso técnico Antônio Rocha. A bem da verdade, olhando para aquela gente ajuntada na carroceria, parecia mais uma ruma de romeiros que delegação esportiva. Inclusive porque, apesar da viagem aparentemente dolorosa, todos mostravam uma enorme felicidade.

O embate entre as duas cidades foi intermediado pelo Antenor Fortes, portuense que passou a morar à época em União, onde também tinha raízes familiares. Ele era um bom jogador e atuaria por Porto. Rocha Júnior não recorda qual foi o critério da seleção dos jogadores unionenses, mas lembra que entre eles estava o Duílio, primogênito do Antônio Rocha, que estudava em Fortaleza e passava férias com a família.

O jogo então começou.
União atuava com camisas amarelas e Porto com uniforme semelhante ao número 1 do River de Teresina – ou do São Paulo, se preferirem.

Duílio ficou no banco, à espera das ordens do duplamente professor Antônio Rocha. A peleja estava disputadíssima. Perto do final do jogo, o placar estava 3x3. Foi quando o árbitro, caseiro, anotou pênalti contra, obviamente, o selecionado de União. O Antenor foi lá e marcou o gol da vitória portuense.

E quanto ao Duílio?
Bem, o nosso técnico ordenou que ele entrasse na primeira metade do segundo tempo. Duílio atuava na lateral e constantemente apoiava o ataque. Antônio Rocha insistia para que ele permanecesse na defesa. E Duílio continuava apoiando o ataque. Diante da desobediência tática do elegante lateral, Antônio Rocha ia se irritando, e mais se irritando, até que chamou o craque na família Rocha à borda do campo e esbravejou:

– Rapazinho, onde você já viu lateral subir ao ataque? Você é maluco?

Por mais que o rapaz explicasse que a seleção brasileira já fazia isso há muito tempo, e dado como exemplo o escrete de 1970, quando o capitão Carlos Alberto fez até gol – o quarto na vitória de 4x1 sobre a Itália, no final da Copa – não teve jeito. Duílio foi sacado do time, e do banco viu, resignadamente e sem poder fazer mais nada, a derrota da gloriosa seleção de União.

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domingo, 7 de março de 2010

Rocha Jr e o Reino da Frejolândia


Antonio Rocha sempre foi, como se diz, de veneta. Em alguns dias, acordava no pleno exercício de seu humor cáustico e muito inteligente, cheio de entrelinhas. Em outros, a sutileza dava lugar a uma irritação que não deixava espaço para as dúvidas. Nesses dias, bastava a pasta de dente cair mais que o normal para ficar irritado.

Pois bem. Rocha Júnior, o sexto filho, lembra com clareza de um desses tais dias em que a pasta caiu fora da escova e a irritação subiu à tona.

Por algum motivo que Rocha Júnior não recorda, Dr. Antonio discutiu com dona Irene. E passou a encontrar todos os defeitos na condução da casa, apesar de todos os cuidados da Irene, num malabarismo que fazia o dinheiro cobrir o mês inteiro. De veneta, esqueceu esses detalhes e passou a reclamar da organização: faltava o mínimo de planejamento, nada estava no lugar.

— Isso aqui virou um frejo.

Para quem não sabe, “frejo” era um modo elegante para dizer que tudo era uma total esculhambação, um verdadeiro cabaré organizacional.

Reclamação feita, Antonio Rocha vestiu a camisa branca de mangas longas e decidiu tomar o rumo da rua. Não satisfeito, antes de distribuir seus apressados passos pelas vias da cidade, chamou Rocha Júnior e ordenou:

— Seu Rocha, venha cá. Pegue uma cartolina bem grande e escreva FRE-JO-LÂN-DIA e pregue bem aqui — disse, apontando para a parede da frente de casa.

Naturalmente que não houve contra-argumentação da parte do filho que acabava de entrar na adolescência. Obediente, o garoto tratou de colocar em prática os conhecidos dotes artísticos que depois o levaria para o campo da arquitetura.

Antes de empreender a tarefa, teve dúvida. Não a dúvida entre cumprir ou deixar de cumprir a ordem. Simplesmente tinha dúvida quanto à grafia. E tratou de dissipar a dúvida com a própria mãe: como se escrevia a tal palavra?

Dúvidas superadas, tratou de caprichar. Pegou a cartolina, fez um rápido esboço e logo estava pronto o magnífico trabalho artístico. Em cores fortes, contrastando com a cartolina branca, estava lá: FREJOLÂNDIA. Não descuidou de nada: com grude de goma, pregou o cartaz logo na entrada de casa. Orgulhoso do trabalho, afatou-se da obra e ficou a média distância por um tempo a espiar, admirando a empreitada.

Algum tempo depois, eis que Antônio Rocha volta para casa e se depara com a vistosa criação. Observou, surpreso, que estava prestes a adentrar no reino da Frejolândia. Mais que rapidamente chamou o artista gráfico da casa e quis saber:

— Que esculhambação é essa?

O filho explicou que apenas tinha cumprido ordens. Veio a contra-ordem:

— Deixe de ser besta e arranque este negócio daí.

Mais calmo do que quando partira, entrou em casa como se não fosse o mecenas da grande obra artística tão caprichosamente executada pelo filho. Mas, para manter o costume, não perdeu a ocasião para mais uma estocada:

— Só existem duas pessoas que realmente entendem de planejamento no Brasil: é a Irene e o João Paulo do Reis Veloso – disse, em referência ao piauiense que à época (início dos anos 1970), era Ministro do Planejamento.
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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Madrugando por Amor à Pátria


O 7 de Setembro em União traz, certamente, muitas lembranças a unionenses de diversas idades.

Depois de 1964, a “Gloriosa” quis impor um patriotismo por decreto. Era gente penando nos porões e a estudantada bradando um amor à Pátria que nem sempre saia a plenos pulmões. Simples: havia um tanto de militarismo que não quer dizer, necessariamente, civismo. E isso incomodava a muitos.

O certo é que todo o país se via obrigado a colocar a estudantada nas ruas. Nem bem começavam as aulas do segundo semestre, no início de agosto, e lá estavam os tambores: bum-bum, bum-bum, bum-bum. E os estudantes pisando como soldados: pam-pam, pam-pam, pam-pam.

Era treino seguido de treino, em todos os colégios. Mas no Ginásio Felinto Rego a coisa era mais caprichada. E mais puxada. Motivo? Dr. Antonio sempre queria que tudo ficasse nos trinques, perfeito.

No dia do desfile, não deixava por menos: a baliza no lugar de destaque, o carro/carroça alegórico preparado com esmero, a banda afinada e os demais alunos em suas alas (dividas por turmas), pisando a um só tempo e com a farda alinhada. (Alguma dúvida? Olhe o comentário anterior, do Aderson Neto)

Antes do dia D, como bem lembra Disraeli (o segundo filho do Dr. Antonio), os treinos eram exigentes.

Disraeli fala de cátedra. Os treinos começavam antes dos primeiros raios de sol apontarem. Pior para os filhos do Dr. Antonio.

— Levanta, rapazinho. Já são quatro e meia da manhã.

Essa era a hora que o Dr. Antonio, professor e diretor do Ginásio Felinto Rego, acordava seus filhos e também alunos do colégio. Tinham que seguir juntos. E Dr. Antonio chegava antes de todos, colocando ordem na casa.

Os ensaios aconteciam no estádio de futebol da cidade durante boa parte de agosto e a primeira semana de setembro. Foi assim por toda a segunda metade da década de 1960 e os primeiros anos da década seguinte. Precisou uma epidemia (quase pandemia) de meningite para que o desfile fosse suspenso um ano. Acho que, depois daí, perdeu viço. Até porque a “Gloriosa” perdia força e a redemocratização estava à vista.

O treinamento diário começava religiosamente às 5 horas da manhã, sob as luzes das fogueiras feitas especialmente para o evento, após as “chamadas” nominais, turma por turma.

As freqüências dos alunos eram praticamente 100%. Só faltava quem realmente não podia comparecer, pois sabiam que a disciplina tinha que ser observada. A falta sem justificativa não passava barato: acabava em, pelo menos, três dias de suspensão.

Ah, lá pelas seis e pouquinho, o ensaio chegava ao fim. Era preciso ter uma margem de tempo para o deslocamento dos que estudavam pela manhã até o Ginásio. A aula começava às 7 horas. E Dr. Antonio queria todos outra vez prontos, em sala, contritos e atentos aos ensinamentos dos professores.

Para muitos alunos, no entanto, difícil era manter os olhos abertos.
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Antonio Rocha e o 7 de Setembro


Aderson de Castro Soares Neto.
É um nome comprido. Mas, resumido, tem um tanto de poesia: Aderson Neto, ou Adersoneto, como ele registrou no e-mail.
Hoje, exatamente hoje, ele está de passeio por Espanha. Mas trabalha mesmo na Avenida Paulista, bem representanto o Piauí, lidando com dinheiro dos outros no pedaço mais rico do Brasil.
Pena que o dinheiro seja do BB e dos empresários depositantes.
Mas, independente do saldo bancário do Aderson, ele é um dos que sempre teve uma atenção especial com a memória de União. E aí está um texto dele, a propósito do 7 de Setembro no Velho Estanhado.

Quem foi aluno do Ginásio Estadual Felinto Rego (depois modificado para Unidade Escolar) nos idos da primeira metade da década de 1970 jamais poderá esquecer os desfiles de 7 de Setembro!

Cada um dos saudosistas que agora nos lêem tem o direito de denominar de Semana da Pátria, Parada de 7 de Setembro, Desfile da Independência do Brasil, o que quiser. O que não posso é dar o direito a esses contemporâneos de esquecerem o zelo, a determinação e a importância que o nosso Doutor Antonio Rocha dava ao evento.

Lembrança imediata: ele com sua indefectível mão alisando o queixo enquanto media as – duras – palavras que ia dirigir aos incautos que marchavam fora do compasso ou que se lhe dirigiam com um dos pés numa sandália havaiana (ou japonesa, lembram?) e o dedão enrolado em esparadrapo!

Milagre seria não ouvir um “olha aqui, rapazinho, o senhor agora está doente para marchar, mas não estava para fazer danações pelos corredores do ginásio”...
A salvação era um atestado médico do Doutor Felinto ou então podia aguardar uma suspensão com outra frase fatal: “o senhor tem três dias para ficar refletindo em casa!”.

Doutor Antonio tinha outra característica fantástica para a Escola da época – era um precursor do ensino interativo: como esquecer as aulas na biblioteca diante do globo terrestre onde o aluno 'via' os países que ele descrevia com tanta propriedade?

Quando tinha prova oral já se esperava a pergunta com o coração na boca: 'Senhor fulano: onde fica a Rússia e quais os seus principais produtos agrícolas?' Se o rapazinho fosse com o dedo indicador rumo a outro continente, desse um passeio pela América ou tremesse as mãos rumo à África, podia esperar um sonoro “pode sentar” sem maiores explicações. E a nota? Ai de quem ousasse perguntar!

Mas o tempo realmente é o senhor da razão – como bem disse o filósofo. Passados os anos e hoje investido na relevante função de professor é que percebo que onde se via dureza, era a mais pura dedicação; onde se achava ser rigor excessivo, era a necessária disciplina para gerir tanta gente e a escassez que sempre permeou a Educação.

Anos passaram-se, mas quando numa pós-graduação na PUC do Rio de Janeiro perguntaram-me a diferença entre professor e educador a resposta foi imediata: “Doutor Antonio Rocha, lá em União, no Piauí!”.

Por tabela a memória puxa a meiguice de “Dona Irene” que a todos chamava “meu filho...'"

Aderson Neto
Unionense filho do Chico Medeiros e da dona Nazi, é poeta, bancário do BB e professor na sala de aula e na vida.
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Uma mágica para salvar o feiticeiro


Seu Modestino sempre foi festejado por um certo poder espiritual.

Macumbeiro conhecido, rezou em metade dos unionenses e num outro tanto de visitantes que chegavam à cidade para se valer de suas relações privilegiadas com as "entidades".

Mas nem sempre a coisa funciona. E às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro.
Quando isto acontece, o jeito é apelar para algum mágico de plantão.

Foi o que aconteceu nos idos da década de 70. O mágico encontrado foi Dr. Antonio, a quem a família de Seu Modesto apelou na hora do aperto.

A bem da verdade, Antonio Rocha sempre foi um faz-tudo. Odontólogo de formação, agrônomo e professor por paixão, também se fez de médico por imposição das circunstâncias. Por muito tempo, era o único na cidade que tinha alguma formação médica, por conta dos dois anos de Faculdade em que o curso de Odontologia e o de Medicina faziam as mesmas cadeiras – só a partir do terceiro ano é que cursavam as cadeiras específicas dos dentistas. Sem médico na cidade, os doentes batiam à porta do Dr. Antonio, a qualquer hora do dia ou da noite. E assim, costurou rasgos de peixeira, emendou queixo espedaçado por machadada e engessou braços quebrados em todo tipo de estripulias.

Mas nem todos buscavam os conselhos e as receitas do Dr. Antonio. Muitos terminavam nas garrafadas do Seu Modestino. E foi aí quando o feitiço virou contra o feiticeiro.

Dr. Antonio sempre defendeu o trabalho dos macumbeiros. Não que acreditasse nos seus poderes de cura e de realizar "trabalhos" especiais. Simplesmente porque achava que eles podiam curar muitos males que eram produto da própria imaginação dos enfermos. Isto é, as doenças psicossomáticas desapareceriam na hora em que o doente acreditasse que as garrafadas seriam um santo remédio.

— Mais de 90 das doenças são produto da própria mente do doente — dizia e repetia, amparado em pesquisas que viu publicadas em alguma das muitas revistas que devorava.

E se era assim, a crença no poder do macumbeiro era suficiente para produzir a cura. O doente se curava.

Dr. Antonio cursou Odontologia na Bahia e freqüentou os terreiros, nas aulas práticas de um professor que procurava mostrar o aspecto científico da relação entre a entrega religiosa e os efeitos sobre o corpo. Viu muita gente "baiar" até entrar em transe, perdendo os sentidos a ponto de não sentir a pele queimando pela brasa do cigarro que o tal professor empurrava.

Pode-se dizer, Dr. Antonio cultivou uma relação amistosa com os macumbeiros – e dois tiveram terreiros quase ao lado de sua casa, no bairro São João, em União. Um deles, charlatão assumido, não gozava da amizade do professor; era só convívio protocolar. O outro era precisamente Seu Modestino, que fazia seu trabalho sem alarde, dava passe nos crédulos, benzia para afastar olho gordo e receitava gororobas para por fim aos males do corpo. Este era boa-praça e tornara-se seu amigo.

Uma certa tarde chegou a notícia: Seu Modesto estava preso.

Quem levou a notícia foi a esposa do macumbeiro, que nesta época já morava no São Felipe, na estrada que liga União a Teresina. A mulher tinha ido à casa do professor pedir socorro. Em concreto, queria que ele se valesse se sua, digamos, notoriedade e de seu prestígio para libertar o curandeiro das grades da cadeia pública.

Dr. Antonio quis saber os motivos da prisão. Logo tomou conhecimento que Seu Modesto fora denunciado pela família de um cliente, que havia morrido após iniciar tratamento com o macumbeiro.

O professor vestiu a camisa branca de margas compridas e seguiu para a cadeia. Chegou lá cumprimentou o delegado e quis mais detalhes. Foi informado que Modestino era acusado de matar o cliente. Que receitou uma garrafada para curar o doente e acabara por matá-lo. Agora, ali estava o curandeiro entre as grades.

Tranqüilo e sem mudar o tom de voz, Dr. Antonio quis saber:
— Cadê a gororoba?
— Também está presa — disse o delegado, altivo, apontando uma garrafa recheada de pedaços de plantas e um tanto de aguardente.

O professor pediu licença e pegou a garrafa. Conhecia todas as plantas que estavam ali, usadas como recurso medicinal. Havia pedaço de pau d’arco, umas folhas de matruz e um naco de gengibre. Também podia-se ver fragmentos de embaúba, quebra-pedra e até folhas de cidreira. Cada coisa tinha lá sua indicação. Juntas, não se sabe mesmo para que serviam.

Dr. Antonio sacudiu bem a garrafa. Virou uma e outra vez. E então se dirigiu ao policial:

— Me arranje um copo.

O delegado estranhou o pedido. Mas atendeu.

O professor abriu a garrafa e encheu o copo. Tomou tudo de uma talagada só, para espanto do policial.

— Delegado, solte o homem. Se eu morrer, prenda de novo.

Diante do atônito policial, Dr. Antonio completou, exibindo a garrafada:

— Delegado, isso pode até não fazer bem, mas com certeza não faz mal a ninguém.

Alguns minutos depois, Seu Modesto estava retornando para seu terreiro. E Dr. Antonio seguia para casa. Tinha uma certeza: a gororoba não matara ninguém. Apenas não tinha podido fazer o milagre de salvar o cliente do macumbeiro porque, certamente, não tinha uma doença psicossomática, e sim um mal físico que a crença sozinha não podia combater.
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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Gonzaga Pierot e o Felinto Rego


Fui aluno do Ginásio Felinto Rêgo de 1970 a 1973. Fui da primeira turma de 1ª série do Ginásio que não fez o quinto ano de admissão.

Fiz as provas do 5º ano nas férias e fui direto do 4º ano primário para a 1ª série do Ginásio. Fui companheiro de sala do seu filho Rocha Júnior. Pude testemunhar não só a qualidade do professor, como a sua disciplina.

Escutei o “mocinho, já para casa” duas vezes por chegar na sala de aula depois de tocar a campainha.

Exagero? Pode ser. Mas com seus filhos ele fazia pior, para dar o exemplo.

Uma vez ele ofereceu carona ao Rocha Júnior no seu carro. Ele estranhou, pois era fato que não acontecia na rotina diária. Apesar da distância de sua casa para o Ginásio, ele vinha sempre no “pé dois”. Naquele dia ele estranhou, mas aceitou.

No trajeto, de vez em quando olhava para o Rocha júnior, mas não dizia nada. O filho ia ficando cada vez mais “cabreiro”. Ao chegarem na porta do Ginásio, o Dr. Antônio olhou mais uma vez para o Rocha Júnior e disse: Rapazinho, esse seu cabelo está muito grande. Vá cortar e depois vá já para casa.

O Rochinha, sem saber o que fazer, apenas disse:

− Me dê o dinheiro para cortar.
− Isso é com a Irene − respondeu.

Eu era e ainda sou fã do Dr. Antônio, das suas aulas de Geografia. Sem anotar nada, apenas de cabeça, ele nos transportava para um mundo distante ao descrever as cidades, estados e países.

Sabíamos no mínimo as cinco principais cidades de cada estado e, dessas, suas características econômicas e geográficas. Sabíamos os países e suas capitais e suas características econômicas e geográficas. Quando viajei ao Paraná, atravessando quase todo o Brasil, era como se aquelas cidades já fossem nossas velhas conhecidas.

Dr. Antonio era e é um homem à frente de seu tempo. Fazia os discursos dos principais políticos de União, desde as campanhas até o da posse. Podemos dizer sem medo de errar que, por muitos anos, ele foi a pessoa mais bem informada de União.

Era por essa sua capacidade intelectual e moral que ele muitas vezes demitia professores e funcionários indicados por políticos e mantinha sua decisão mesmo diante dos apelos dos políticos, numa época que eles mandavam muito mais do que hoje.

Na sua administração no Ginásio ele não se preocupava apenas com a formação teórica. Sempre teve a preocupação com a prática, implantando escolas de datilografia (que foi muito importante para eu conseguir meu primeiro emprego no Paraná) e laboratórios.

Ao chegar no Paraná, baixinho, com sotaque “baiano” como eles diziam, no final do ano do 1º ano do 2º Grau já era o primeiro da sala. Era o padrão de qualidade do Ginásio Felinto Rêgo em ação.
Abraços,

Luís Gonzaga Sampaio Pierote
Teresina, 01 de fevereiro de 2010.

PS.:
Gonzaga Pierot é um unionense porreta que já andou meio mundo, sempre com muito sucesso e competência.