domingo, 31 de janeiro de 2010

e-Mail do Professor Lourival Lopes

Meu caro Fenelon Rocha:
Há muito tempo que eu esperava essa atidude (porque idéia eu sei que você já tinha há anos) de sua parte. Jornalista brilhante, professor competente, você não poderia fugir da responsabilidade de resgatar as memórias de seu querido pai.

O Dr. Antonio, sem dúvida, marcou (no sentido latino da palavra "educere") a vida, no mínimo de três gerações (décadas de 60, 70 e 80).

Criticado por alguns, amado por muitos, o Dr. Antonio é daqueles professores abnegados, desprovido de quaisquer interesses pessoais, cujo prazer está apenas na arte de ensinar.

Outro dia fui visitá-lo e lá estava ele com um livro sobre a II Guerra Mundial de mais de seiscentas páginas todo marcado nas partes que ele considerava mais importantes. O que leva um professor aposentado de 86 anos a continuar com leituras de obras didáticas sobre aquilo que mais fez na sua vida de professor? A única resposta possível é o amor pelo conhecimento.

O dr. Antonio Rocha é uma pessoa de profundo conhecimento geral, e muito atualizado. Fico imaginando um homem desse, com tamanho saber e memória de computador, utilizando-se da internet.

Parabéns, meu caroFenelon, pela iniciativa. Tenho certeza de que você terá muito trabalho em selecionar as estórias e histórias daqueles que tiveram a honra de ter sido aluno do Prof. Antonio Rocha. Professor com letras maiúsculas.
Um abraço do admirador.

Lourival da Silva Lopes
(Unionense e professor dedicado a formar gerações)
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Uma relação não muito católica (2)

Este tópico é seqüência do do anterior, sobre a difícil relação do Dr. Antonio com os padres, em especial Padre Isaac Vilarinho e Padre Emídio Andrade.

PADRE EMÍDIO:
As desavenças com o padre Emídio Andrade começaram pouco tempo depois do sacerdote chegar a União.

Como fazia sempre, Dr. Antonio convidava o pároco – como também o juiz – para dar aulas no Ginásio Felinto Rego. Era uma forma de assegurar professores de boa formação. Não foi diferente com padre Emídio.

Nas primeiras semanas de aula, no entanto, o padre causou estranheza. Chegou no ginásio de sandália currulepo. Para Dr. Antonio, que exigia aprumo dos alunos, passava um pouco da conta. E reclamou.

Padre Emídio não gostou. Daí em diante, alimentou uma animosidade profunda. Primeiro, tentou arrebatar o posto de diretor do Ginásio, buscando apoio inclusive na cúria diocesana. Não surtiu efeito. Mas o sacerdote não desistiu.

O confronto culminou com uma denúncia formal à Secretaria de Educação do Estado contra o diretor. Entre outras coisas, acusava-o de relapso e de centralizador. Uma verdade e uma mentira. Dr Antonio sempre foi centralizador. Relapso, jamais.

O professor tomou conhecimento da denúncia em uma de suas visitas à Secretaria, quando foi informado por um dos muitos amigos que mantinha por lá. Teve acesso à denúncia, cheia de assinaturas, muitas delas falsificadas – diversos nomes tinham a mesma grafia, indicando que uma mesma pessoa assinara por outras. Mas também havia diversas assinaturas verdadeiras, de pessoas ligadas à igreja e ao padre.

A única assinatura que não constava era a do padre. Mas fora ele mesmo o responsável pela entrega do documento. A denúncia tinha DNA conhecido.

O esforço do padre para tirar Antonio Rocha da diretoria do Felinto Rego não prosperou. Apesar do gênio forte, ela conhecido como bom gestor e, principalmente, como um educador preocupado com a qualidade do ensino. Sabia-se em todo o Piauí: os egressos do colégio estadual de União tinham boa formação e eram adversários duríssimos em qualquer concurso público.

Apesar do empenho do padre, a denúncia foi arquivada. E logo Antonio Rocha teria a chance de dar o troco.

A chance veio nas comemorações dos 10 anos de fundação do Ginásio Felinto Rego, no dia 13 de junho daquele ano de 1967. Havia representantes de outras cidades. E o próprio secretário de educação, padre Baldoíno Barbosa de Deus, prestigiava o evento.


O primeiro toco veio quando, na formação da mesa de honra, o diretor não chamou o padre. O secretário presidia a solenidade e passaria a palavra ao primeiro orador, precisamente o professor Rocha.

O conteúdo do discurso era do conhecimeto de uns poucos. Escrito à mão pelo professor, fora datilografado por José do Egito Vasconcelos, funcionário do Banco do Brasil que se afeiçoara muito ao professor. José do Egito preocupou-se e advertiu ao deputado José Raimundo Bona Medeiros. Este pediu que Dr Antonio maneirasse no tom das críticas.

Não adiantou.

− Zé Raimundo, eu não sou diretor. Eu sou é professor. Se quiserem, podem me tirar da direção – disse, reafirmando a intenção de pronunciar o discurso.

O conteúdo tinha endereço mais que claro. E ele estava bem ali na frente, sentado na platéia, escutando. Em certo trecho da fala, Antonio Rocha dizia:

− Lutamos há 10 anos. Inicialmente, contamos com o apoio dos otimistas. Em seguida, transformamos em aliados os pessimistas. Mas não pudemos, nem devemos, perdoar aqueles que desejaram e continuam hoje a desejar o nosso fracasso. Por não possuírem a coragem para o combate leal, o combate frente a frente, preferem o anonimato, que é o apanágio dos covardes.

Padre Emídio sofreria duas derrotas. Primeiro, viu ali mesmo na solenidade um discurso de Baldoíno Barbosa de Deus que era de claro apoio ao diretor do Ginásio.

− Os meus problemas no Estado são bem maiores que os do Professor Rocha aqui. Mas a obrigação dele, como a minha, é tirar as pedras do caminho e seguir em frente.

Diante daquele desfecho, o padre se viu enfraquecido. Vinte dias depois pediu demissão do Ginásio. Não havia conseguido ser diretor. Então não queria ser professor.
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Uma relação não muito católica (1)

A relação de Dr. Antonio Rocha com os padres nunca foi, pode-se dizer, muito católica. Na verdade, sempre teve um pé atrás com os padres – ou pelo menos com a maioria deles. Sempre desconfiava de suas boas intenções, vendo na atuação dos sacerdotes muito interesses bem mais terrenos que divinos.

O professor recorria ao próprio Pai Nosso para traduzir o que pensava dos padres:

− É só Venha a Nós. Ao Vosso Reino, nada.

Tinha lá os seus eleitos. Admirava Dom Avelar Brandão Vilela a ponto de forma uma caravana para sua posse como Primaz do Brasil, em 1971. Também sempre se derreteu em elogios ao padre Luís Brasileiro e a dois espanhóis que desembarcaram em União no final dos anos 60: padre Xavier e padre José.

Creio que tinha uma certa predileção pelo padre Xavier, que gostava de fumar e bebê – tal como Dr. Antonio. Xavier também era pouco convencional, a ponto de fazer o percurso entre União e Teresina em meia hora – num Fusca, e num tempo em que a estrada ainda era de piçarra. Coisa de louco, tanto que poucos aceitavam carona com o espanhol voador.

Padre José Gonzalez Alonso não é mais padre. É bispo, à frente da diocese de Cajazeiras, na Paraíba. Mas na memória dos unionenses segue simplesmente “Padre José”, um homem tranqüilo, muito culto e sempre atencioso. “Um sujeito 100%”, no dizer de Antônio Rocha.

Nas contas do professor, no entanto, outros padres simplesmente não contam. Ou, se contam, estão numa conta com resultado negativo. Nessa listam estão Emídio Andrade – que deixou a batina – e Isaac Vilarinho, que chegou a monsenhor.

Neste tópico, vai apenas a história do padre Isaac. No seguinte será a vez do padre Emídio.

PADRE ISAAC:
Quando foi pároco de União, no início dos anos 60, padre Isaac tinha atitude que às vezes gerava atrito com as lideranças locais. Causava especial desconforto o aberto apoio que dava ao movimento dos trabalhadores rurais. Mas isto não afetava Dr. Antonio, tampouco é a razão para as críticas que faz ao depois Monsenhor Isaac Vilarinho.

Tudo está vinculado aos importantes registros históricos que o pároco fez desaparecer. Uns 35 anos depois, os ecos daquela tragédia histórica ainda eram ouvidos. E mantendo o desconforto.

No final da década de 90, um grupo de oeirenses chegou a União. O grupo representava o Instituto Histórico de Oeiras e tinha à frente o desembargador José Luís Martins de Carvalho, que servira em União como juiz e professor do Ginásio Felinto Rego, dirigido pelo professor Antonio Rocha.

Pelo conhecimento minucioso da história do município desde os tempos em que ainda era a fazenda Estanhado, o professor foi chamado pelo prefeito Edmilson Mota para receber o grupo. A intenção dos oeirenses era resgatar informações a respeito de um conterrâneo ilustre, Manoel Clementino de Souza Martins, que havia morrido em terras unionenses, na luta contra os Balaios.

O professor sabia dos detalhes:

A luta contra os balaios aconteceu entre 1838 e 1840. Clementino era sobrinho do então governador da província, Manoel de Souza Martins, o Visconde da Parnaíba. Morreu em combate, no local hoje correspondente ao povoado Santa Rita, município de União. Recebeu ali mesmo as honras militares e o reconhecimento da igreja, sendo sepultado na própria matriz de Nossa Senhora dos Remédios. O templo tinha começado a ser construído alguns anos antes e só ficou totalmente acabado em 1865. As sepulturas tinham sido conservadas durante as obras.

− Gostaríamos de conhecer a sepultura de Clementino – adiantou o desembargador José Luís.

− Infelizmente não vai ser possível – avisou o professor.

Foi quando revelou toda a tragédia patrocinada pelo padre Isaac.

Naquele início dos anos 60, Isaac Valarinho queria reformar a igreja matriz. Conseguiu apoio e dinheiro e passou-se à reforma. E lá estavam umas seis sepulturas, coladas na parede lateral do lado direito da porta de entrada.

O padre não gostava das sepulturas. Alheio à importância daqueles registros históricos, aproveitou a reforma e mandou arrancar tudo, despejando os restos em uma vala do cemitério.

− Pelo menos podemos ver a sepultura no cemitério? − quis saber o desembargador.

Não podiam. Agora, nada mais restava, nem mesmo uma indicação da vala que recebera os restos dos seis antepassados. Os oeirenses fizeram o caminho de volta. Deixaram em União, muito vivas, as críticas do professor contra o padre Isaac e seu “crime contra a história”.

− Padre Isaac foi péssimo, mais do que péssimo com a história de União.

(acima, veja o tópico sobre padre Emídio).

sábado, 30 de janeiro de 2010

O e-mail do Prof. Cantídio Filho

Dr. Antônio está guardado na minha memória, desde quando eu era aluno e ele diretor do Ginásio Felinto Rego, em União. Convivi e apreendi sobre disciplina, história e geografia.

Dono de uma personalidade rígida e sábia, Dr. Antônio foi responsável pela formação de gerações de estudantes unionenses que incorporaram marcas que carregam para a vida. No seu tempo de diretor e eu de aluno, Dr. Antônio, não permitia aluno com cabelo grande ou sem o uniforme devidamente arrumado.

Quando batia a campainha e o aluno ficasse conversando nos corredores, estava lascado. Aluno fazer algazarra, nem pensar! Era logo chamado à diretoria para uma conversa de pé de orelha e possivelmente uma suspensão. O pior era que o aluno suspenso levava um comunicado aos pais informando sobre os motivos da suspensão.

Triste de quem tentava fazer bagunça em sala de aula, quebrar carteiras, riscá-las, enfim fazer molecagem, como dizíamos na primeira metade dos anos 80. Quando faltava um professor, ele substituía e recitava aulas de história e geografia com infinita sabedoria.

Dr. Antônio é protagonista de uma época em que o modelo de educação tinha uma linha autoritária, contudo, para o contexto da época, necessário.

Naquela época tínhamos certeza que a escola pública não era uma casa de mãe Joana. Ela tinha uma hierarquia, era mais respeitada, produzia conhecimento. Afinal, o conhecimento, sempre lhe foi companheiro. Basta ver, o Dr. Antônio escrevia grande parte dos discursos das autoridades políticas do município de União.

Tenho certeza que caso atuasse como educador na contemporaneidade, Dr. Antônio saberia dosar compromisso, autoridade, diálogo e amor. Com isto a escola pública com certeza cumpriria o seu dever até mais do que muitas da iniciativa privada, cuja maioria envereda pelo lucro fácil em detrimento de uma formação mais humana, responsável e cidadã. Educadores como Dr. Antonio e o professor de português e literatura, Pedro Reis fazem falta e, como fazem nos dias de hoje, principalmente na escola pública.

Um grande abraço,

CANTÍDIO FILHO
(Unionense, Jornalista e Professor da UFPI)

O Perseguido não oficial


Quando desembarcou em União nos primeiros anos da década de 70, Pedro Reis trouxe na bagagem uma suspeita. Não se sabia ao certo, mas dizia-se que estava fugindo.

Não se dizia claramente, até porque vivia-se os anos duros da ditadura militar. Era o governo Médici. Tempo de sussuros.

A Arena mandava e desmandava em União. Mesmo assim, a ditadura causava sobressaltos. Anos antes, Antônio José Medeiros fora preso.

Antonio José era um contestador, dentro do molde da Faculdade de Filosofia, onde estudava. Na faculdade, de orientação católica, bebia nas fontes filosóficas e na cartilha do Concílio Vaticano II, que estimulou o surgimento de uma igreja católica mais comprometida com as questões sociais. Por conta disso e das andanças pelos bairros pobres da zona sul de Teresina, acabou preso na capital.

O professor Antônio Rocha chegou em casa com a notícia:
— Eita, o filho do Pindunga foi preso – disse, levantando as sobrancelhas e franzindo a testa em sinal de preocupação.

Quando Pedro Reis desembarcou, vindo do Mato Grosso, Rocha não disse nada. Pelo menos que os filhos pudessem ouvir, nada! Mas os comentários circulavam pela cidade: o novato era um fugitivo.

A imprecisão da informação dava asas aos comentários. Havia quem dissesse que fugiu de um compromisso matrimonial. Outros, que tinha contas a pagar com a justiça. Mas a grande maioria dizia que era um comunista – e que se esquivava das garras da ditadura.

Não custa repetir, era tempo de Médici, quando o clima de perseguição estava no ar, palpável

Apesar dos rumores, Antonio Rocha convidou Pedro Reis para dar aula no Ginásio Felinto Rego. Foi um dos melhores professores que o Ginásio já teve. Tinha mais ou menos a mesma linha do diretor: não se preocupava apenas em ensinar a matéria – no caso de Pedro, inglês e Português – mas provocava, estimulava a pensar.

Em pouco tempo, conquistou um mundo de admiradores, especialmente entre os alunos. Mas não faltavam os desgostosos, especialmente entre os mais tradicionais que não viam com bons olhos aquele professor metido entre os alunos e vivendo sozinho num quarto ao lado da loja do seu Perico.

Um certo domingo chega a União o professor Manuel Paulo Nunes, que funcionava como inspetor federal para a área da Educação. Quer dizer, fiscalizava as escolas para conferir os aspectos administrativos e pedagógicos.

Ao chegar, foi direto procurar o diretor do Ginásio. Amigo de Antônio Rocha de longas datas, não arrodeou:

— Rocha, você tem aqui um professor que é procurado pela polícia política.

O diretor ficou estático por alguns momentos. Seguia com a cabeça levemente levantada, olhando Paulo Nunes pelo arco inferior das lentes bifocais. Sabia de quem falava. Mas não passou recibo.

— Danou-se – limitou-se a dizer, enquanto levantava a mão esquerda para apertar a ponta do queixo com o indicador e o polegar.
Paulo Nunes repetiu a informação, também serenamente. Rocha quis saber o que aquele comunicado significava.

— Você veio fazer a notificação? – perguntou.

Não. Paulo Nunes estava ali mais como amigo que na condição de inspetor. Queria alertar e evitar problemas.

Recebera a informação e sabia que a qualquer momento poderia haver uma ordem expressa dos representantes militares. Nesse caso, as medidas não tinham um parâmetro: podia resultar na pura e simples demissão do professor ou até mesmo na prisão. Podia sobrar inclusive para o diretor, apesar de integrante da Arena.

Depois de um breve silêncio, Paulo Nunes revelou que a informação ainda não era oficial. Mas o relatório em mãos da polícia política qualificava Pedro Reis como um comunista de grande atividade subversiva pelas bandas do Mato Grosso. Apesar de não ter nenhuma denúncia formal contra Pedro, o matrogrossense era visto como um fugitivo. Simplesmente porque, naquele tempo, criminoso era quem a ditadura queria que assim fosse.

Depois de um pequeno silêncio, Paulo Nunes e Dr. Antônio chegaram a um acordo: enquanto não houver nenhuma ordem formal, nada se faz. Nem da parte da inspetoria da educação, tampouco da diretoria do Ginásio.

Seria como se nenhum dos dois soubessem do caso.

Pedro foi comunicado por Antônio Rocha da pressão que começava a sofrer. Decidiram que seguiria dando aulas – e que o assunto permaneceria em segredo.

Logo Médici deixou o posto e Geisel assumiu prometendo a abertura lenta, gradual e segura. É verdade que a abertura levou dez anos até se transrformar em democracia. Mas a atitude de Paulo Nunes e do Dr. Antônio permitiu que Pedro seguisse seu ofício de dar aulas e formar pessoas.

Anos depois ele mudaria para Teresina, onde também se destacou como um dos grandes professores de diversos colégios da capital.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Felinto Rego, 50 anos


Na década de 70, uma frase tomava conta dos cursinhos pré-vestibular de São Paulo: “quer passar, mate um japonês”. Na mesmo época (e nas duas décadas seguintes), uma frase semelhante podia ser escutada em cidades como Recife ou Campina Grande: “quer passar, dá um chega-prá-lá num piauiense”. A frase em relação aos piauienses também incluía os concursos públicos, sobretudo para cargos como juiz e procurador.

A enorme presença de nipônicos (ou descendentes destes) entre os aprovados nas faculdades paulistas se justificava pela grande colônia de origem japonesa e pela reconhecida disciplina de seus integrantes, um diferencial importante nesse tipo de concurso. No caso dos piauienses, a boa performance nessas seleções era sempre atribuída à boa educação encontrada nas escolas do Estado. Uma boa educação que o Piauí teve e continua tendo, como bem demonstram colégios como o Dom Barreto e o núcleo de ensino superior de Teresina.
A diferença é que, à exceção da UFPI, a referencia de ensino no Piauí saiu do setor público para o setor privado. Sim, é verdade: já houve um tempo em que a escola pública do Piauí foi referência. Na década de 60 e 70, as escolas públicas piauienses (e não era só o Liceu) mandavam alunos para todo o país com quase absoluta garantia de sucesso.

Quando faço essa reflexão sobre a realidade da escola pública tenho como ponto de partida dois fatos. Primeiro, a pesquisa do IBGE que relacionou as 64 cidades brasileiras sem analfabetismo (quer dizer, não mais que 4% da população não sabe ler). Segundo, a comemoração dos 50 anos do Ginário Felinto Rego, de União.

A pesquisa do IBGE revela que as 64 cidades sem analfabetismo estão em apenas cinco estados, precisamente os cinco estados mais ao sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Rio Grande e Santa Catarina somam 56 das cidades – e, não custa lembrar, são os dois estados com melhor qualidade de vida do país. Também é verdade: educação e qualidade de vida andam juntas. Sempre.

Os números do IBGE devem ser olhados com atenção. Por exemplo: o Brasil tem cerca de 6 mil municípios. Então significa dizer os municipios sem analfabetismo somam ao redor de 1% do total. Uma tragédia que por si só diz muito da realidade social brasileira, e da condenação prévia a que se está submetendo a maioria da população. E essa tragédia é responsabilidade de todos, embora o poder estatal (em todos os níveis) tenha muito quer ver com isso, diante do escândalo que é a escola pública.

Sim, já tivemos escolas públicas de qualidade. E aí vem o Ginásio Felinto Rego. Em seus 50 anos, ocupou lugar de referência por duas décadas ou um pouco mais. Alunos saiam de União para disputar vagas em colégios como o Marista de Fortaleza – cujo seleção à época era um vestibular antecipado – e logravam não apenas passar, mas ficar nas melhores turmas. Em minha casa temos dois exemplos disso.

Qual o segredo do Felinto Rego? Creio, dois.

O primeiro, que a escola pública era vista com outros olhos até a reforma educacional feita pela ditadura no final dos anos 60, implantada nos primeiros anos 70. Segundo, que União contava à época com nomes absolutamente dedicados à formação. Eram muitos: Auri Nery, Maria Rego, Manoel Oliveira, Antonio Leite, “padre” (hoje arcebispo) José, Zé Araújo, Marcos Parente, Concebida Sales, Diva Nery, Pedro Reis, Luci Gomes etc, etc). E tinha além disso um comando, uma diretriz personificada no professor Antônio Rocha – ou simplesmente Dr. Antônio –, diretor do colégio por mais de 20 anos. Como disse Rita Lobão (uma unionense “exilada” na Universidade do Mato Grosso), a propósito do cinquentenário, para as gerações dos anos 60 e 70, o professor Rocha e o Felinto Rego são a mesma coisa.

Quando veio a reforma educacional da ditadura, o professor foi profético: “vão esculhambar com a educação”. Foi o começo do fim para a escola pública, fim que teimava em não começar no Felinto Rego.

Professor magistral tanto de História como de Geografia, Dr. Antônio sempre se destacou pela disciplina. Era e continua sendo um “duro”, ainda que a idade rebaixe o ímpeto e a aposentadoria torne pouco útil tanta autoconfiança. Como educador, sempre adotou um lema seguido à risca: a boa educação começa de casa. E a disciplina com os demais era um pouco mais disciplinar com os filhos – e são muitos: dez. Acho que não há um só que não tenha ouvido a frase: “Rapazinho, prá casa. Três dias de suspensão”.

Além da disciplina, o principal: a mais inteira entrega à educação, buscando ter os melhores quadros, brigando pela qualificação dos professores e as melhores condições de ensino. Uma vez, em sala de aula, o então juiz e professor (depois desembargador) Francisco Gomes dizia: “Dr. Antônio tem mais ciúmes do Ginásio do que de dona Irena [a esposa]”. Um dos filhos do diretor, aluno da matéria, infantilmente achava que ciumes era sinal de amor e balançou a cabeça em desacordo. O juiz, vendo a reação filial, deu uma lição extra: “Tem, sim! Sua mãe é uma santa. E esse Ginásio é a vida de seu pai”.

O aluno atende pelo nome de Fenelon Rocha.

Um filho orgulhoso de União. Muito orgulhoso do Felinto Rego. E um pouco mais orgulhoso que outros filhos da terra, pelo destacado papel desempenhado pelo “Dr. Antônio” na formação de várias gerações de unionenses.

Esta lição do professor Antônio Rocha ainda pode ser aprendida por todos: a escola pública pode (e deve) ser de qualidade. De muita qualidade.


Fenelon Rocha
Jornalista e Prof. da UFPI

Publicado no jornal Diário do Povo em 20 de junho de 2007

Vamos resgatar uma bela história


Antônio Martins da Rocha, ou Professor Antônio Rocha ou simplesmente Dr. Antônio.

Nasceu em União (Piaui) em 27 de agosto de 1923. Passou parte da adolescência em Parnaíba, fez científico em Recife e Odontologia em Salvador.

Voltou para o Piauí e exerceu seu ofício de dentista e - sobretudo - sua arte de ensinar em Floriano, Parnaíba, Buriti dos Lopes, Piracuruca, União, Valença e outra vez União.
Foi professor por onde andou. Mas formou geraçoes, mesmo!, em União. Lá ele ajudou a criar o Ginário Felinto Rego (que dirigiu por mais de 20 anos) e o Colégio de 2º Grau - isso ainda nos anos 70.

Sua referência é esta: professor. Sempre foi um homem da educaçao. E como tal conviveu com muita, muita gente. Com elas construiu muitas histórias, várias delas bem humoradas.

Queria resgatar essa história com você.

Mais que filho, fui seu aluno - dentro e fora da sala de aula.

E gostaria de resgatar essa trajetória que considero tão importante.

Para tanto, espero contar com a colaboração dos ex-alunos do Dr. Antonio.

Espero sua história. Ou sua foto.

Envie para fenelonrocha@globo.com

Cada história (ou foto) será muito bem recebida. E disponibilizada aqui.

Um abração.


Fenelon Rocha

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