sábado, 27 de março de 2010

As inconfidência da Edileuza ‘Maninha’ Medeiros

Na década de 70, toda garota tinha um Caderno de Confidências. Uma praga. Parecia até uma obrigação, ou uma espécie de rito de passagem: completados os 12 ou 13 anos, estava lá o Caderno, com uma capa cheia de figuras fantasiosas, marcas de beijos e um monte de páginas que mesclavam declarações de colegas e revelações íntimas de todo tipo.

Edileuza Medeiros não fugia à regra.

Antes de seguir em frente, uma explicação: Edileuza é o nome da Maninha. Muito popular especialmente pelas muitas estripulias que fazia, talvez a própria Edileuza esquecesse o nome de batismo. Era Maninha e assim segue sendo. Acabou!

Pois bem: a Maninha também tinha seu Caderno de Confidências, preenchido ora com contrição, ora entre gargalhadas. Preenchia páginas e páginas dos Cadernos das colegas. Em muitas aulas no Ginásio Felinto Rego, enquanto o professor ou professora enchia o quadro de textos, as meninas enchiam as páginas dos Cadernos de Confidências, suspirando.

Ao invés de fórmulas matemática, regras gramaticais ou pontos cardeais, estavam lá os registros de amores platônicos espalhados aos quatro ventos, de desejos ainda por realizar e até poemas que o amado nunca veria.

Cada menina um Caderno. E em cada Caderno um mundo de sentimentos – desejo, ódio, paixão – louca paixão, como costumam ser as paixões adolescentes. Por isso mesmo, o grande desejo dos meninos era conseguir por as mãos em um desses cadernos: era o mesmo que desvendar o íntimo da garota. E, mais que tudo, era uma farra, espalhando-se e fazendo galhofa com os segredos descobertos.

Pensando bem, uma das poucas que não tinha o tal Caderno de Confidência era a Lúcia Nery.
Lucinha era uma coisa à parte. Em termos cronológicos, tinha um ano a mais que a média da sua turma – na maturidade, eram uns dois ou três anos a mais o que, aos 14 ou 15, equivale a um século. Lúcia lia muito, era centrada, racional, informada, com boa conversa intelectual. Por isso mesmo, não andava escrevendo Cadernos de Confidências; preferia longos textos reflexivos que mostrava para quase ninguém. No máximo, conversava com os colegas de séries adiantadas – ou recebia as investidas de jovens professores que se encantavam com o nível da moça que depois enveredou pela gestão de negócios e acabou diretora de uma rede de supermercados.

Na turma de Ginásio, o papo da Lucinha era com o Aderson Soares Neto, sempre com um tema literário na ponta da língua; o Osmir Pierot, desde pequeno descolado e provocante; e o Fenelon Rocha, meio retraído mas sempre informado sobre muito do que se passava no mundo. O que se diz é que a Lucinha fazia suspirar turmas inteiras, encantadas com a beleza e uma certa superioridade da moça. Mas, até onde se sabe, nunca escutou tais suspiros – talvez porque não tivesse ouvidos para tais coisas de meninos imaturos.

Com esse perfil, a Lúcia Nery era quase um ET. A Maninha, não: era normal, de carne e osso, metida em muitas folias e todas as encrencas – boa parte criada por ela mesma. Era (e é), como se diz, da galera. E tinha lá seu Caderno de Confidências.

Ria dos próprios escritos. E ria mais ainda das confidências registradas pelas colegas. O melhor de tudo era que os tais Cadernos tornavam as aulas agradáveis: enquanto o professor discorria sobre sei lá o que, Maninha estava contrita, debruçada sobre o Caderno, escrevendo sem parar. Parecia uma aluna dedicada. Mas era apenas uma garota interessada em viver o que a vida lhe oferecia de melhor.

No período de Ginásio, foi uma das recordistas de suspensões. Apesar das constantes punições, tinha uma relação amistosa com Dr. Antonio Rocha. De tanto repetir para Maninha “Mocinha, pra casa com dez dias de suspensão”, Dr. Antonio já o fazia com um certo riso encoberto pela cara série e o ar firme de quem manda. Ela já tomava tudo na galhofa. Não ria na cara do diretor, mas gargalhava tão logo o perdia de vista. E seguia para casa, para mais um período de “férias”.

O sentimento de Maminha em relação ao Dr. Antonio era um misto de medo e diversão. Às vezes, de desafio. Fumava no colégio, em geral no banheiro, dividindo a bagana com algumas colegas quase tão afoitas e apresentadinhas. Dançava sobre as carteiras. Comia dentro da sala de aula, quando isso era proibido. E alfinetava cada professor com ironias infantis que deliciavam a turma e ruborizavam os mestres.

Uma vez, na aula de Técnicas de Educação para o Lar – é, havia isso no Ginásio, junto com Técnicas Comerciais, Técnicas Agrícolas e Técnicas Industriais – a Maninha resolveu assaltar a geladeira onde estavam guardadas as guloseimas produzidas nas práticas dos alunos. Pegou um pão e encheu de doce. Mal fechou a geladeira e ouviu os passos firmes do Dr. Antonio entrando na sala. Para não ser flagrada, não teve outra saída: enfiou todo o doce sanduíche na boca. E assim ficou por longos minutos, parada como uma estátua, muda e quase sem fôlego, até que o professor deixasse o ambiente. Dessa vez escapou.

Mas nem sempre foi assim.

Numa aula do professor Pedro Reis, Maninha foi chamada pelo mestre. Nem notou, e seguiu escrevendo. Claro, estava dedicada ao Caderno de Confidências. Era como se não existisse o mundo, só as fantasias daquelas páginas. Pedro voltou a chamar a aluna e ela seguia escrevendo. Aproximou-se da carteira da Maninha e tomou o Caderno.

O confisco aconteceu exatamente no momento em que Dr. Antonio entrava na sala.
Desta vez não teve suspensão. Mas Dr. Antonio fez um comentário que se revelou profético:

– Essa aí não tem jeito. Vai ser o diploma mais bonito que o Ginásio vai ter: enquanto os outros passam 4 anos, ela vai ficar 8.

Dito e feito. Maninha quase não sai do Ginásio. Em compensação, quase não pára de se divertir.
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sexta-feira, 19 de março de 2010

Aventuras futebolísticas do Felipão do Estanhado

Antônio Rocha já foi um pouco de muita coisa.

Já empunhou uma batuta, dando ordem e ritmo aos desfiles de 7 de Setembro. Também comandou caravanas de alunos pelo Piauí afora e até mesmo à frente de um time de beatos. Estranho, né? Logo o Dr. Antonio, que nunca foi chegado a padres e a rezas.

Pois é verdade: ele se meteu numa Kombi com um tanto de gente – o padre José Gonzalez Alonso à frente – e se mandou para Salvador, ver de perto a posse de Dom Avelar como arcebispo primaz do Brasil. Ele não gostava de muitos padres, mas gostava muitos de uns poucos sacerdotes, entre eles o mesmo padre (agora bispo) José e Dom Avelar.

Sim, Antonio Rocha também sempre foi metido a fazer festas. Nos dias de hoje, seriam um promoter. As mangueiras do sítio da família, em União, são testemunhas vivas e podadas de tantas furupas regadas a batida de limão ou maracujá, feitas pelo próprio anfitrião.

Também foi dentista um montão de ano e professor a vida toda, até se aposentar de vez – por obra da vista curta – já passado dos 70 anos. Mas essas facetas são conhecidas: fazem parte do currículo oficial.

O que pouca gente sabe mesmo é que Dr. Antonio também enveredou pelos campos futebolístico, como técnico. Uma espécie de Felipão do Estanhado.

Rocha Júnior, o sexto filho da larga prole, lembra de uma grande partida em que Dr. Antonio colocou em prática os seus conhecimentos futebolísticos. Era inicio dos anos 1970, quanto ele convidou o filho para acompanhá-lo até Porto, quando União enfrentaria a seleção local.

A viagem começou no próprio domingo, dia do jogo, bem cedo da manhã. Era uma total integração: jogadores e torcida, todos juntinhos e apertados, seguiam sentados no piso da carroceria de um caminhão. Na boléia, o motorista e o meticuloso técnico Antônio Rocha. A bem da verdade, olhando para aquela gente ajuntada na carroceria, parecia mais uma ruma de romeiros que delegação esportiva. Inclusive porque, apesar da viagem aparentemente dolorosa, todos mostravam uma enorme felicidade.

O embate entre as duas cidades foi intermediado pelo Antenor Fortes, portuense que passou a morar à época em União, onde também tinha raízes familiares. Ele era um bom jogador e atuaria por Porto. Rocha Júnior não recorda qual foi o critério da seleção dos jogadores unionenses, mas lembra que entre eles estava o Duílio, primogênito do Antônio Rocha, que estudava em Fortaleza e passava férias com a família.

O jogo então começou.
União atuava com camisas amarelas e Porto com uniforme semelhante ao número 1 do River de Teresina – ou do São Paulo, se preferirem.

Duílio ficou no banco, à espera das ordens do duplamente professor Antônio Rocha. A peleja estava disputadíssima. Perto do final do jogo, o placar estava 3x3. Foi quando o árbitro, caseiro, anotou pênalti contra, obviamente, o selecionado de União. O Antenor foi lá e marcou o gol da vitória portuense.

E quanto ao Duílio?
Bem, o nosso técnico ordenou que ele entrasse na primeira metade do segundo tempo. Duílio atuava na lateral e constantemente apoiava o ataque. Antônio Rocha insistia para que ele permanecesse na defesa. E Duílio continuava apoiando o ataque. Diante da desobediência tática do elegante lateral, Antônio Rocha ia se irritando, e mais se irritando, até que chamou o craque na família Rocha à borda do campo e esbravejou:

– Rapazinho, onde você já viu lateral subir ao ataque? Você é maluco?

Por mais que o rapaz explicasse que a seleção brasileira já fazia isso há muito tempo, e dado como exemplo o escrete de 1970, quando o capitão Carlos Alberto fez até gol – o quarto na vitória de 4x1 sobre a Itália, no final da Copa – não teve jeito. Duílio foi sacado do time, e do banco viu, resignadamente e sem poder fazer mais nada, a derrota da gloriosa seleção de União.

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domingo, 7 de março de 2010

Rocha Jr e o Reino da Frejolândia


Antonio Rocha sempre foi, como se diz, de veneta. Em alguns dias, acordava no pleno exercício de seu humor cáustico e muito inteligente, cheio de entrelinhas. Em outros, a sutileza dava lugar a uma irritação que não deixava espaço para as dúvidas. Nesses dias, bastava a pasta de dente cair mais que o normal para ficar irritado.

Pois bem. Rocha Júnior, o sexto filho, lembra com clareza de um desses tais dias em que a pasta caiu fora da escova e a irritação subiu à tona.

Por algum motivo que Rocha Júnior não recorda, Dr. Antonio discutiu com dona Irene. E passou a encontrar todos os defeitos na condução da casa, apesar de todos os cuidados da Irene, num malabarismo que fazia o dinheiro cobrir o mês inteiro. De veneta, esqueceu esses detalhes e passou a reclamar da organização: faltava o mínimo de planejamento, nada estava no lugar.

— Isso aqui virou um frejo.

Para quem não sabe, “frejo” era um modo elegante para dizer que tudo era uma total esculhambação, um verdadeiro cabaré organizacional.

Reclamação feita, Antonio Rocha vestiu a camisa branca de mangas longas e decidiu tomar o rumo da rua. Não satisfeito, antes de distribuir seus apressados passos pelas vias da cidade, chamou Rocha Júnior e ordenou:

— Seu Rocha, venha cá. Pegue uma cartolina bem grande e escreva FRE-JO-LÂN-DIA e pregue bem aqui — disse, apontando para a parede da frente de casa.

Naturalmente que não houve contra-argumentação da parte do filho que acabava de entrar na adolescência. Obediente, o garoto tratou de colocar em prática os conhecidos dotes artísticos que depois o levaria para o campo da arquitetura.

Antes de empreender a tarefa, teve dúvida. Não a dúvida entre cumprir ou deixar de cumprir a ordem. Simplesmente tinha dúvida quanto à grafia. E tratou de dissipar a dúvida com a própria mãe: como se escrevia a tal palavra?

Dúvidas superadas, tratou de caprichar. Pegou a cartolina, fez um rápido esboço e logo estava pronto o magnífico trabalho artístico. Em cores fortes, contrastando com a cartolina branca, estava lá: FREJOLÂNDIA. Não descuidou de nada: com grude de goma, pregou o cartaz logo na entrada de casa. Orgulhoso do trabalho, afatou-se da obra e ficou a média distância por um tempo a espiar, admirando a empreitada.

Algum tempo depois, eis que Antônio Rocha volta para casa e se depara com a vistosa criação. Observou, surpreso, que estava prestes a adentrar no reino da Frejolândia. Mais que rapidamente chamou o artista gráfico da casa e quis saber:

— Que esculhambação é essa?

O filho explicou que apenas tinha cumprido ordens. Veio a contra-ordem:

— Deixe de ser besta e arranque este negócio daí.

Mais calmo do que quando partira, entrou em casa como se não fosse o mecenas da grande obra artística tão caprichosamente executada pelo filho. Mas, para manter o costume, não perdeu a ocasião para mais uma estocada:

— Só existem duas pessoas que realmente entendem de planejamento no Brasil: é a Irene e o João Paulo do Reis Veloso – disse, em referência ao piauiense que à época (início dos anos 1970), era Ministro do Planejamento.
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