
Edileuza Medeiros não fugia à regra.
Antes de seguir em frente, uma explicação: Edileuza é o nome da Maninha. Muito popular especialmente pelas muitas estripulias que fazia, talvez a própria Edileuza esquecesse o nome de batismo. Era Maninha e assim segue sendo. Acabou!
Pois bem: a Maninha também tinha seu Caderno de Confidências, preenchido ora com contrição, ora entre gargalhadas. Preenchia páginas e páginas dos Cadernos das colegas. Em muitas aulas no Ginásio Felinto Rego, enquanto o professor ou professora enchia o quadro de textos, as meninas enchiam as páginas dos Cadernos de Confidências, suspirando.
Ao invés de fórmulas matemática, regras gramaticais ou pontos cardeais, estavam lá os registros de amores platônicos espalhados aos quatro ventos, de desejos ainda por realizar e até poemas que o amado nunca veria.
Cada menina um Caderno. E em cada Caderno um mundo de sentimentos – desejo, ódio, paixão – louca paixão, como costumam ser as paixões adolescentes. Por isso mesmo, o grande desejo dos meninos era conseguir por as mãos em um desses cadernos: era o mesmo que desvendar o íntimo da garota. E, mais que tudo, era uma farra, espalhando-se e fazendo galhofa com os segredos descobertos.
Pensando bem, uma das poucas que não tinha o tal Caderno de Confidência era a Lúcia Nery.
Lucinha era uma coisa à parte. Em termos cronológicos, tinha um ano a mais que a média da sua turma – na maturidade, eram uns dois ou três anos a mais o que, aos 14 ou 15, equivale a um século. Lúcia lia muito, era centrada, racional, informada, com boa conversa intelectual. Por isso mesmo, não andava escrevendo Cadernos de Confidências; preferia longos textos reflexivos que mostrava para quase ninguém. No máximo, conversava com os colegas de séries adiantadas – ou recebia as investidas de jovens professores que se encantavam com o nível da moça que depois enveredou pela gestão de negócios e acabou diretora de uma rede de supermercados.
Na turma de Ginásio, o papo da Lucinha era com o Aderson Soares Neto, sempre com um tema literário na ponta da língua; o Osmir Pierot, desde pequeno descolado e provocante; e o Fenelon Rocha, meio retraído mas sempre informado sobre muito do que se passava no mundo. O que se diz é que a Lucinha fazia suspirar turmas inteiras, encantadas com a beleza e uma certa superioridade da moça. Mas, até onde se sabe, nunca escutou tais suspiros – talvez porque não tivesse ouvidos para tais coisas de meninos imaturos.
Com esse perfil, a Lúcia Nery era quase um ET. A Maninha, não: era normal, de carne e osso, metida em muitas folias e todas as encrencas – boa parte criada por ela mesma. Era (e é), como se diz, da galera. E tinha lá seu Caderno de Confidências.
Ria dos próprios escritos. E ria mais ainda das confidências registradas pelas colegas. O melhor de tudo era que os tais Cadernos tornavam as aulas agradáveis: enquanto o professor discorria sobre sei lá o que, Maninha estava contrita, debruçada sobre o Caderno, escrevendo sem parar. Parecia uma aluna dedicada. Mas era apenas uma garota interessada em viver o que a vida lhe oferecia de melhor.
No período de Ginásio, foi uma das recordistas de suspensões. Apesar das constantes punições, tinha uma relação amistosa com Dr. Antonio Rocha. De tanto repetir para Maninha “Mocinha, pra casa com dez dias de suspensão”, Dr. Antonio já o fazia com um certo riso encoberto pela cara série e o ar firme de quem manda. Ela já tomava tudo na galhofa. Não ria na cara do diretor, mas gargalhava tão logo o perdia de vista. E seguia para casa, para mais um período de “férias”.
O sentimento de Maminha em relação ao Dr. Antonio era um misto de medo e diversão. Às vezes, de desafio. Fumava no colégio, em geral no banheiro, dividindo a bagana com algumas colegas quase tão afoitas e apresentadinhas. Dançava sobre as carteiras. Comia dentro da sala de aula, quando isso era proibido. E alfinetava cada professor com ironias infantis que deliciavam a turma e ruborizavam os mestres.
Uma vez, na aula de Técnicas de Educação para o Lar – é, havia isso no Ginásio, junto com Técnicas Comerciais, Técnicas Agrícolas e Técnicas Industriais – a Maninha resolveu assaltar a geladeira onde estavam guardadas as guloseimas produzidas nas práticas dos alunos. Pegou um pão e encheu de doce. Mal fechou a geladeira e ouviu os passos firmes do Dr. Antonio entrando na sala. Para não ser flagrada, não teve outra saída: enfiou todo o doce sanduíche na boca. E assim ficou por longos minutos, parada como uma estátua, muda e quase sem fôlego, até que o professor deixasse o ambiente. Dessa vez escapou.
Mas nem sempre foi assim.
Numa aula do professor Pedro Reis, Maninha foi chamada pelo mestre. Nem notou, e seguiu escrevendo. Claro, estava dedicada ao Caderno de Confidências. Era como se não existisse o mundo, só as fantasias daquelas páginas. Pedro voltou a chamar a aluna e ela seguia escrevendo. Aproximou-se da carteira da Maninha e tomou o Caderno.
O confisco aconteceu exatamente no momento em que Dr. Antonio entrava na sala.
Desta vez não teve suspensão. Mas Dr. Antonio fez um comentário que se revelou profético:
– Essa aí não tem jeito. Vai ser o diploma mais bonito que o Ginásio vai ter: enquanto os outros passam 4 anos, ela vai ficar 8.
Dito e feito. Maninha quase não sai do Ginásio. Em compensação, quase não pára de se divertir.
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