domingo, 28 de fevereiro de 2010

Madrugando por Amor à Pátria


O 7 de Setembro em União traz, certamente, muitas lembranças a unionenses de diversas idades.

Depois de 1964, a “Gloriosa” quis impor um patriotismo por decreto. Era gente penando nos porões e a estudantada bradando um amor à Pátria que nem sempre saia a plenos pulmões. Simples: havia um tanto de militarismo que não quer dizer, necessariamente, civismo. E isso incomodava a muitos.

O certo é que todo o país se via obrigado a colocar a estudantada nas ruas. Nem bem começavam as aulas do segundo semestre, no início de agosto, e lá estavam os tambores: bum-bum, bum-bum, bum-bum. E os estudantes pisando como soldados: pam-pam, pam-pam, pam-pam.

Era treino seguido de treino, em todos os colégios. Mas no Ginásio Felinto Rego a coisa era mais caprichada. E mais puxada. Motivo? Dr. Antonio sempre queria que tudo ficasse nos trinques, perfeito.

No dia do desfile, não deixava por menos: a baliza no lugar de destaque, o carro/carroça alegórico preparado com esmero, a banda afinada e os demais alunos em suas alas (dividas por turmas), pisando a um só tempo e com a farda alinhada. (Alguma dúvida? Olhe o comentário anterior, do Aderson Neto)

Antes do dia D, como bem lembra Disraeli (o segundo filho do Dr. Antonio), os treinos eram exigentes.

Disraeli fala de cátedra. Os treinos começavam antes dos primeiros raios de sol apontarem. Pior para os filhos do Dr. Antonio.

— Levanta, rapazinho. Já são quatro e meia da manhã.

Essa era a hora que o Dr. Antonio, professor e diretor do Ginásio Felinto Rego, acordava seus filhos e também alunos do colégio. Tinham que seguir juntos. E Dr. Antonio chegava antes de todos, colocando ordem na casa.

Os ensaios aconteciam no estádio de futebol da cidade durante boa parte de agosto e a primeira semana de setembro. Foi assim por toda a segunda metade da década de 1960 e os primeiros anos da década seguinte. Precisou uma epidemia (quase pandemia) de meningite para que o desfile fosse suspenso um ano. Acho que, depois daí, perdeu viço. Até porque a “Gloriosa” perdia força e a redemocratização estava à vista.

O treinamento diário começava religiosamente às 5 horas da manhã, sob as luzes das fogueiras feitas especialmente para o evento, após as “chamadas” nominais, turma por turma.

As freqüências dos alunos eram praticamente 100%. Só faltava quem realmente não podia comparecer, pois sabiam que a disciplina tinha que ser observada. A falta sem justificativa não passava barato: acabava em, pelo menos, três dias de suspensão.

Ah, lá pelas seis e pouquinho, o ensaio chegava ao fim. Era preciso ter uma margem de tempo para o deslocamento dos que estudavam pela manhã até o Ginásio. A aula começava às 7 horas. E Dr. Antonio queria todos outra vez prontos, em sala, contritos e atentos aos ensinamentos dos professores.

Para muitos alunos, no entanto, difícil era manter os olhos abertos.
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Antonio Rocha e o 7 de Setembro


Aderson de Castro Soares Neto.
É um nome comprido. Mas, resumido, tem um tanto de poesia: Aderson Neto, ou Adersoneto, como ele registrou no e-mail.
Hoje, exatamente hoje, ele está de passeio por Espanha. Mas trabalha mesmo na Avenida Paulista, bem representanto o Piauí, lidando com dinheiro dos outros no pedaço mais rico do Brasil.
Pena que o dinheiro seja do BB e dos empresários depositantes.
Mas, independente do saldo bancário do Aderson, ele é um dos que sempre teve uma atenção especial com a memória de União. E aí está um texto dele, a propósito do 7 de Setembro no Velho Estanhado.

Quem foi aluno do Ginásio Estadual Felinto Rego (depois modificado para Unidade Escolar) nos idos da primeira metade da década de 1970 jamais poderá esquecer os desfiles de 7 de Setembro!

Cada um dos saudosistas que agora nos lêem tem o direito de denominar de Semana da Pátria, Parada de 7 de Setembro, Desfile da Independência do Brasil, o que quiser. O que não posso é dar o direito a esses contemporâneos de esquecerem o zelo, a determinação e a importância que o nosso Doutor Antonio Rocha dava ao evento.

Lembrança imediata: ele com sua indefectível mão alisando o queixo enquanto media as – duras – palavras que ia dirigir aos incautos que marchavam fora do compasso ou que se lhe dirigiam com um dos pés numa sandália havaiana (ou japonesa, lembram?) e o dedão enrolado em esparadrapo!

Milagre seria não ouvir um “olha aqui, rapazinho, o senhor agora está doente para marchar, mas não estava para fazer danações pelos corredores do ginásio”...
A salvação era um atestado médico do Doutor Felinto ou então podia aguardar uma suspensão com outra frase fatal: “o senhor tem três dias para ficar refletindo em casa!”.

Doutor Antonio tinha outra característica fantástica para a Escola da época – era um precursor do ensino interativo: como esquecer as aulas na biblioteca diante do globo terrestre onde o aluno 'via' os países que ele descrevia com tanta propriedade?

Quando tinha prova oral já se esperava a pergunta com o coração na boca: 'Senhor fulano: onde fica a Rússia e quais os seus principais produtos agrícolas?' Se o rapazinho fosse com o dedo indicador rumo a outro continente, desse um passeio pela América ou tremesse as mãos rumo à África, podia esperar um sonoro “pode sentar” sem maiores explicações. E a nota? Ai de quem ousasse perguntar!

Mas o tempo realmente é o senhor da razão – como bem disse o filósofo. Passados os anos e hoje investido na relevante função de professor é que percebo que onde se via dureza, era a mais pura dedicação; onde se achava ser rigor excessivo, era a necessária disciplina para gerir tanta gente e a escassez que sempre permeou a Educação.

Anos passaram-se, mas quando numa pós-graduação na PUC do Rio de Janeiro perguntaram-me a diferença entre professor e educador a resposta foi imediata: “Doutor Antonio Rocha, lá em União, no Piauí!”.

Por tabela a memória puxa a meiguice de “Dona Irene” que a todos chamava “meu filho...'"

Aderson Neto
Unionense filho do Chico Medeiros e da dona Nazi, é poeta, bancário do BB e professor na sala de aula e na vida.
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Uma mágica para salvar o feiticeiro


Seu Modestino sempre foi festejado por um certo poder espiritual.

Macumbeiro conhecido, rezou em metade dos unionenses e num outro tanto de visitantes que chegavam à cidade para se valer de suas relações privilegiadas com as "entidades".

Mas nem sempre a coisa funciona. E às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro.
Quando isto acontece, o jeito é apelar para algum mágico de plantão.

Foi o que aconteceu nos idos da década de 70. O mágico encontrado foi Dr. Antonio, a quem a família de Seu Modesto apelou na hora do aperto.

A bem da verdade, Antonio Rocha sempre foi um faz-tudo. Odontólogo de formação, agrônomo e professor por paixão, também se fez de médico por imposição das circunstâncias. Por muito tempo, era o único na cidade que tinha alguma formação médica, por conta dos dois anos de Faculdade em que o curso de Odontologia e o de Medicina faziam as mesmas cadeiras – só a partir do terceiro ano é que cursavam as cadeiras específicas dos dentistas. Sem médico na cidade, os doentes batiam à porta do Dr. Antonio, a qualquer hora do dia ou da noite. E assim, costurou rasgos de peixeira, emendou queixo espedaçado por machadada e engessou braços quebrados em todo tipo de estripulias.

Mas nem todos buscavam os conselhos e as receitas do Dr. Antonio. Muitos terminavam nas garrafadas do Seu Modestino. E foi aí quando o feitiço virou contra o feiticeiro.

Dr. Antonio sempre defendeu o trabalho dos macumbeiros. Não que acreditasse nos seus poderes de cura e de realizar "trabalhos" especiais. Simplesmente porque achava que eles podiam curar muitos males que eram produto da própria imaginação dos enfermos. Isto é, as doenças psicossomáticas desapareceriam na hora em que o doente acreditasse que as garrafadas seriam um santo remédio.

— Mais de 90 das doenças são produto da própria mente do doente — dizia e repetia, amparado em pesquisas que viu publicadas em alguma das muitas revistas que devorava.

E se era assim, a crença no poder do macumbeiro era suficiente para produzir a cura. O doente se curava.

Dr. Antonio cursou Odontologia na Bahia e freqüentou os terreiros, nas aulas práticas de um professor que procurava mostrar o aspecto científico da relação entre a entrega religiosa e os efeitos sobre o corpo. Viu muita gente "baiar" até entrar em transe, perdendo os sentidos a ponto de não sentir a pele queimando pela brasa do cigarro que o tal professor empurrava.

Pode-se dizer, Dr. Antonio cultivou uma relação amistosa com os macumbeiros – e dois tiveram terreiros quase ao lado de sua casa, no bairro São João, em União. Um deles, charlatão assumido, não gozava da amizade do professor; era só convívio protocolar. O outro era precisamente Seu Modestino, que fazia seu trabalho sem alarde, dava passe nos crédulos, benzia para afastar olho gordo e receitava gororobas para por fim aos males do corpo. Este era boa-praça e tornara-se seu amigo.

Uma certa tarde chegou a notícia: Seu Modesto estava preso.

Quem levou a notícia foi a esposa do macumbeiro, que nesta época já morava no São Felipe, na estrada que liga União a Teresina. A mulher tinha ido à casa do professor pedir socorro. Em concreto, queria que ele se valesse se sua, digamos, notoriedade e de seu prestígio para libertar o curandeiro das grades da cadeia pública.

Dr. Antonio quis saber os motivos da prisão. Logo tomou conhecimento que Seu Modesto fora denunciado pela família de um cliente, que havia morrido após iniciar tratamento com o macumbeiro.

O professor vestiu a camisa branca de margas compridas e seguiu para a cadeia. Chegou lá cumprimentou o delegado e quis mais detalhes. Foi informado que Modestino era acusado de matar o cliente. Que receitou uma garrafada para curar o doente e acabara por matá-lo. Agora, ali estava o curandeiro entre as grades.

Tranqüilo e sem mudar o tom de voz, Dr. Antonio quis saber:
— Cadê a gororoba?
— Também está presa — disse o delegado, altivo, apontando uma garrafa recheada de pedaços de plantas e um tanto de aguardente.

O professor pediu licença e pegou a garrafa. Conhecia todas as plantas que estavam ali, usadas como recurso medicinal. Havia pedaço de pau d’arco, umas folhas de matruz e um naco de gengibre. Também podia-se ver fragmentos de embaúba, quebra-pedra e até folhas de cidreira. Cada coisa tinha lá sua indicação. Juntas, não se sabe mesmo para que serviam.

Dr. Antonio sacudiu bem a garrafa. Virou uma e outra vez. E então se dirigiu ao policial:

— Me arranje um copo.

O delegado estranhou o pedido. Mas atendeu.

O professor abriu a garrafa e encheu o copo. Tomou tudo de uma talagada só, para espanto do policial.

— Delegado, solte o homem. Se eu morrer, prenda de novo.

Diante do atônito policial, Dr. Antonio completou, exibindo a garrafada:

— Delegado, isso pode até não fazer bem, mas com certeza não faz mal a ninguém.

Alguns minutos depois, Seu Modesto estava retornando para seu terreiro. E Dr. Antonio seguia para casa. Tinha uma certeza: a gororoba não matara ninguém. Apenas não tinha podido fazer o milagre de salvar o cliente do macumbeiro porque, certamente, não tinha uma doença psicossomática, e sim um mal físico que a crença sozinha não podia combater.
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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Gonzaga Pierot e o Felinto Rego


Fui aluno do Ginásio Felinto Rêgo de 1970 a 1973. Fui da primeira turma de 1ª série do Ginásio que não fez o quinto ano de admissão.

Fiz as provas do 5º ano nas férias e fui direto do 4º ano primário para a 1ª série do Ginásio. Fui companheiro de sala do seu filho Rocha Júnior. Pude testemunhar não só a qualidade do professor, como a sua disciplina.

Escutei o “mocinho, já para casa” duas vezes por chegar na sala de aula depois de tocar a campainha.

Exagero? Pode ser. Mas com seus filhos ele fazia pior, para dar o exemplo.

Uma vez ele ofereceu carona ao Rocha Júnior no seu carro. Ele estranhou, pois era fato que não acontecia na rotina diária. Apesar da distância de sua casa para o Ginásio, ele vinha sempre no “pé dois”. Naquele dia ele estranhou, mas aceitou.

No trajeto, de vez em quando olhava para o Rocha júnior, mas não dizia nada. O filho ia ficando cada vez mais “cabreiro”. Ao chegarem na porta do Ginásio, o Dr. Antônio olhou mais uma vez para o Rocha Júnior e disse: Rapazinho, esse seu cabelo está muito grande. Vá cortar e depois vá já para casa.

O Rochinha, sem saber o que fazer, apenas disse:

− Me dê o dinheiro para cortar.
− Isso é com a Irene − respondeu.

Eu era e ainda sou fã do Dr. Antônio, das suas aulas de Geografia. Sem anotar nada, apenas de cabeça, ele nos transportava para um mundo distante ao descrever as cidades, estados e países.

Sabíamos no mínimo as cinco principais cidades de cada estado e, dessas, suas características econômicas e geográficas. Sabíamos os países e suas capitais e suas características econômicas e geográficas. Quando viajei ao Paraná, atravessando quase todo o Brasil, era como se aquelas cidades já fossem nossas velhas conhecidas.

Dr. Antonio era e é um homem à frente de seu tempo. Fazia os discursos dos principais políticos de União, desde as campanhas até o da posse. Podemos dizer sem medo de errar que, por muitos anos, ele foi a pessoa mais bem informada de União.

Era por essa sua capacidade intelectual e moral que ele muitas vezes demitia professores e funcionários indicados por políticos e mantinha sua decisão mesmo diante dos apelos dos políticos, numa época que eles mandavam muito mais do que hoje.

Na sua administração no Ginásio ele não se preocupava apenas com a formação teórica. Sempre teve a preocupação com a prática, implantando escolas de datilografia (que foi muito importante para eu conseguir meu primeiro emprego no Paraná) e laboratórios.

Ao chegar no Paraná, baixinho, com sotaque “baiano” como eles diziam, no final do ano do 1º ano do 2º Grau já era o primeiro da sala. Era o padrão de qualidade do Ginásio Felinto Rêgo em ação.
Abraços,

Luís Gonzaga Sampaio Pierote
Teresina, 01 de fevereiro de 2010.

PS.:
Gonzaga Pierot é um unionense porreta que já andou meio mundo, sempre com muito sucesso e competência.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Jacó Sampaio, a Bolota e a suspensão


Sem dúvida o Dr. Antônio, "O Careca" ou o "Rocha", como era chamado pelos alunos do ginásio, tem sua participação marcada na minha adolescencia.

Ele costumava ministrar suas aulas de Estudos Sociais (com ênfase em Geografia) na biblioteca. A biblioteca era o local ideal, pois como tinha varios mapas, isso facilitava as aulas de geografia, mas, como as mesas não eram individuais, facilitava também as conversas paralelas. Eu, como era um tagarela, certamente fui chamado atenção, muitas vezes, pelo Dr. Antônio, que la pelas tantas soltava um: "Seu Jacó, fecha essa matraca ai!...", mas como eu era um bom aluno, não recebia maiores punições.

As aulas eram após o recreio. Certa vez, eu fiquei na sala lendo uns gibis da Maria Alzira, não percebi o fim do recreio e acabei esquecendo da aula na biblioteca. Como eu era um tagarela, e não faltava às aulas, o Dr Antônio sentiu a minha falta. Quando perguntou por mim, o pessoal falou que eu tava na sala.

Ele foi até a sala ver o que estava acontecendo. Quando eu percebi foi só aquela careca passando pelos congombós. Pensei comigo: "ih, tô frito!

Ele pegou o gibi, olhou. Era aquele gibi da Bolota. Olhou pra mim, soltou a sentença: "Seu Jacó, o sr. tem três dias de suspensão prá ler bolão em casa!". Quando relembro a cena dou risadas, mas nós tínhamos um medo descomunal do Dr. Antônio.

Para mim é uma honra ter sido aluno desse grande homem, que foi responsável pela formação educacional de várias gerações de unionenses. Se hoje sou Engenheiro Civil, Mestre em Informática, certamente o Dr. Antônio tem sua particicipação marcada na minha formação.

Grande abraço. E transmita um grande abraço ao Dr. Antônio por mim

Jacó Sampaio
(Unionense, Engenheiro bilhante, cumprindo exílio voluntário no Paraná)
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A árvore genealógica dos Rocha

Quem gosta mesmo das referências antepassadas é o Dilson, além do próprio Antônio Rocha (pai). Mas ei que a contribuição vem do Rocha Júnior - que é o quarto Antonio Martins da Rocha na linhagem nobre da família, conforme do próprio faz questao de colocar no quadro exposto neste post.

Vejam que os Martins da Rocha vem de longe, desde o berço lusitano. Aqui no Piauí, as referêcias principais são as cidades de Jerumenha e Bertolínea, além de União.

O que está neste quadro é só a linhagem direta. Não há referências a outros nomes, mais ou menos ilustres, como o Visconde de Parnaíba, que foi governador da província do Piauí por uns 20 anos. Tampouco figuram nomes menos votados - se bem que Souza Martins, o Visconde, não precisou ser votado para chegar ao posto maior.
De qualquer forma, aí está o registro cuidadosamente compilado pelo Rocha Júnior a partir do livro Dados Genealógicos da Família Rocha, do Sebastião Martins de A. Costa; José F. de S. Rezende; e Moacyr S. da Rocha.



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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O aprendiz de motorista

Possivelmente, até ele concorde: se fosse motorista profissional, Antonio Rocha morreria de fome. Sempre foi o que se chama de um “roda presa”. Além disso, nunca soube da existência da correia dentada ou do carburador; tampouco tem conhecimento de onde se esconde o radiador ou mesmo para que serve a chave de roda.

Quando juntava uma coisa com a outra, o estrago estava feito.

Pois esse candidato a Rubinho Barrichelo comprou, em 1974, um Corcel GT. Um carrão, bonito e esportivo.

Todos os dias seguia para o Ginásio Felinto Rego montado na máquina. Um dia, a meio caminho, percebeu que o carro puxava para um lado. Parou. Desceu. E viu: o pneu estava furado.

Sem muita intimidade com as ferramentas, deixou o Corcel estacionado. E pediu que um garoto avisasse aos filhos, em casa. Eles que cuidassem do pneu furado.

Ao chegar à quinta da família Rocha, o garoto deu o recado para Fenelon, o sétimo de dez filhos do professor com dona Irene.

O carro estava estacionado a uns sete quarteirões de casa – quase um quilômetro de distância. Fenelon resolveu que deveria trazer a máquina para casa.

Seguido de outros irmãos, entre eles Dílson – o oitavo dos rebentos –, seguiu para providenciar o resgate. Pensava em trocar o pneu e, depois, empurrar o veículo até a garagem doméstica, em forma de latada. E assim estava sendo feito.

Pneu trocado, Fenelon tomou a direção e um magote de menino se prontificou a empurrar o carro. Depois de percorrido uns 100 metros, Fenelon meteu a segunda e deu a partida no motor. O carro estava funcionando e ganhou velocidade. Fenelon estava dirigindo.

Era a primeira vez. Antes, o máximo que tinha feito era ligar o carro e deixar o motor esquentando até que o pai tomasse o mando da direção e rumasse para o Ginásio. É verdade, o rapaz treinava o engate das marchas, enquanto o carro estava parado na garagem. Mas dirigir, de verdade, nunca antes.

Levou o carro até a casa e colocou debaixo da latada, antes fazendo o parachoque beijar levemente um pé de guabiraba. Quando Dr. Antonio chegou à noite, o carro estava em casa. Fenelon já dormia. Devia sonhar – ou ter pesadelos – imaginando a reação que Dr. Antonio teria, ao saber que dirigira o carro sendo um menino do buchão e, pior, sem nunca ter dirigido antes.

No outro dia, bem cedo, o professor encara o filho e pergunta:
− Foi você quem trouxe o carro?
− Foi − respondeu o filho, sem convicção e sem saber que reação esperar.
− Pois vamos me deixar no Ginásio.

A reação foi surpreendente. E trazia outro desafio: dirigir o carro pela segunda vez e tendo Dr. Antonio do lado. Um sufoco.
Fenelon tomou o mando do Corcel e rumou para o Ginásio. Chegou ao destino sem sobrassaltos, estacionou direitinho e passou a chave para o dono da máquina.

− Muito bem – limitou-se a dizer.
Em casa, no entanto, Dr. Antônio passou à gozação. Ria do nervosismo do recém-promovido a motorista e da trajetória sinuosa que traçava no meio da rua.

− Não sei como, ele encontrava esquina no meio da rua − dizia, entre risos.

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Por certo, é melhor ri dos outros que ser o motivo do riso alheio. E o “motorista” Antonio Rocha era de causar gargalhadas.
A inabilidade do Dr. Antonio com os automóveis ganhou as ruas de União em forma de piada. Os piadistas atacavam, especialmente, a lentidão do professor ao volante. Era quase como uma tartaruga. Uma espécie de Rubinho do Estanhado. Claro, virou piada.

Isso aconteceu logo depois que comprou o tal Corcel GT.

O carro, modelo 69, era imponente, bem vistoso, todo vermelho com uma larga tarja negra sobre o capô, da tela frontal até o início do pára-brisa. Despertava a cobiça dos esportistas, já que um carro com motorização mais forte e um desempenho mais agressivo.

Segundo as más línguas unionenses, um dia Dr. Antonio resolveu explorar o potencial do possante, colocando à prova não só os limites do veículo como sua capacidade de motorista.
Seria uma prova com testemunha. Ou melhor, testemunhas, já que junto estava a espora, Irene, e o caçula, Délio, por essa época um meninote que carecia de cuidados especiais como cabe a toda criança.
Antônio Rocha se aprumou no banco do motorista, ao passo que dona Irene e Délio foram se acomodando ao lado, no banco do passageiro. O professor ligou o motor, deu umas duas aceleradas – uma delas bem profunda e duradoura, para esquentar o motor. Meteu a primeira e advertiu aos companheiros de aventura:

− Irene, segura o Délio que eu vou puxar 20.

Era assim. Quando passava de 20 km/h era uma proeza.
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