sábado, 27 de março de 2010

As inconfidência da Edileuza ‘Maninha’ Medeiros

Na década de 70, toda garota tinha um Caderno de Confidências. Uma praga. Parecia até uma obrigação, ou uma espécie de rito de passagem: completados os 12 ou 13 anos, estava lá o Caderno, com uma capa cheia de figuras fantasiosas, marcas de beijos e um monte de páginas que mesclavam declarações de colegas e revelações íntimas de todo tipo.

Edileuza Medeiros não fugia à regra.

Antes de seguir em frente, uma explicação: Edileuza é o nome da Maninha. Muito popular especialmente pelas muitas estripulias que fazia, talvez a própria Edileuza esquecesse o nome de batismo. Era Maninha e assim segue sendo. Acabou!

Pois bem: a Maninha também tinha seu Caderno de Confidências, preenchido ora com contrição, ora entre gargalhadas. Preenchia páginas e páginas dos Cadernos das colegas. Em muitas aulas no Ginásio Felinto Rego, enquanto o professor ou professora enchia o quadro de textos, as meninas enchiam as páginas dos Cadernos de Confidências, suspirando.

Ao invés de fórmulas matemática, regras gramaticais ou pontos cardeais, estavam lá os registros de amores platônicos espalhados aos quatro ventos, de desejos ainda por realizar e até poemas que o amado nunca veria.

Cada menina um Caderno. E em cada Caderno um mundo de sentimentos – desejo, ódio, paixão – louca paixão, como costumam ser as paixões adolescentes. Por isso mesmo, o grande desejo dos meninos era conseguir por as mãos em um desses cadernos: era o mesmo que desvendar o íntimo da garota. E, mais que tudo, era uma farra, espalhando-se e fazendo galhofa com os segredos descobertos.

Pensando bem, uma das poucas que não tinha o tal Caderno de Confidência era a Lúcia Nery.
Lucinha era uma coisa à parte. Em termos cronológicos, tinha um ano a mais que a média da sua turma – na maturidade, eram uns dois ou três anos a mais o que, aos 14 ou 15, equivale a um século. Lúcia lia muito, era centrada, racional, informada, com boa conversa intelectual. Por isso mesmo, não andava escrevendo Cadernos de Confidências; preferia longos textos reflexivos que mostrava para quase ninguém. No máximo, conversava com os colegas de séries adiantadas – ou recebia as investidas de jovens professores que se encantavam com o nível da moça que depois enveredou pela gestão de negócios e acabou diretora de uma rede de supermercados.

Na turma de Ginásio, o papo da Lucinha era com o Aderson Soares Neto, sempre com um tema literário na ponta da língua; o Osmir Pierot, desde pequeno descolado e provocante; e o Fenelon Rocha, meio retraído mas sempre informado sobre muito do que se passava no mundo. O que se diz é que a Lucinha fazia suspirar turmas inteiras, encantadas com a beleza e uma certa superioridade da moça. Mas, até onde se sabe, nunca escutou tais suspiros – talvez porque não tivesse ouvidos para tais coisas de meninos imaturos.

Com esse perfil, a Lúcia Nery era quase um ET. A Maninha, não: era normal, de carne e osso, metida em muitas folias e todas as encrencas – boa parte criada por ela mesma. Era (e é), como se diz, da galera. E tinha lá seu Caderno de Confidências.

Ria dos próprios escritos. E ria mais ainda das confidências registradas pelas colegas. O melhor de tudo era que os tais Cadernos tornavam as aulas agradáveis: enquanto o professor discorria sobre sei lá o que, Maninha estava contrita, debruçada sobre o Caderno, escrevendo sem parar. Parecia uma aluna dedicada. Mas era apenas uma garota interessada em viver o que a vida lhe oferecia de melhor.

No período de Ginásio, foi uma das recordistas de suspensões. Apesar das constantes punições, tinha uma relação amistosa com Dr. Antonio Rocha. De tanto repetir para Maninha “Mocinha, pra casa com dez dias de suspensão”, Dr. Antonio já o fazia com um certo riso encoberto pela cara série e o ar firme de quem manda. Ela já tomava tudo na galhofa. Não ria na cara do diretor, mas gargalhava tão logo o perdia de vista. E seguia para casa, para mais um período de “férias”.

O sentimento de Maminha em relação ao Dr. Antonio era um misto de medo e diversão. Às vezes, de desafio. Fumava no colégio, em geral no banheiro, dividindo a bagana com algumas colegas quase tão afoitas e apresentadinhas. Dançava sobre as carteiras. Comia dentro da sala de aula, quando isso era proibido. E alfinetava cada professor com ironias infantis que deliciavam a turma e ruborizavam os mestres.

Uma vez, na aula de Técnicas de Educação para o Lar – é, havia isso no Ginásio, junto com Técnicas Comerciais, Técnicas Agrícolas e Técnicas Industriais – a Maninha resolveu assaltar a geladeira onde estavam guardadas as guloseimas produzidas nas práticas dos alunos. Pegou um pão e encheu de doce. Mal fechou a geladeira e ouviu os passos firmes do Dr. Antonio entrando na sala. Para não ser flagrada, não teve outra saída: enfiou todo o doce sanduíche na boca. E assim ficou por longos minutos, parada como uma estátua, muda e quase sem fôlego, até que o professor deixasse o ambiente. Dessa vez escapou.

Mas nem sempre foi assim.

Numa aula do professor Pedro Reis, Maninha foi chamada pelo mestre. Nem notou, e seguiu escrevendo. Claro, estava dedicada ao Caderno de Confidências. Era como se não existisse o mundo, só as fantasias daquelas páginas. Pedro voltou a chamar a aluna e ela seguia escrevendo. Aproximou-se da carteira da Maninha e tomou o Caderno.

O confisco aconteceu exatamente no momento em que Dr. Antonio entrava na sala.
Desta vez não teve suspensão. Mas Dr. Antonio fez um comentário que se revelou profético:

– Essa aí não tem jeito. Vai ser o diploma mais bonito que o Ginásio vai ter: enquanto os outros passam 4 anos, ela vai ficar 8.

Dito e feito. Maninha quase não sai do Ginásio. Em compensação, quase não pára de se divertir.
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sexta-feira, 19 de março de 2010

Aventuras futebolísticas do Felipão do Estanhado

Antônio Rocha já foi um pouco de muita coisa.

Já empunhou uma batuta, dando ordem e ritmo aos desfiles de 7 de Setembro. Também comandou caravanas de alunos pelo Piauí afora e até mesmo à frente de um time de beatos. Estranho, né? Logo o Dr. Antonio, que nunca foi chegado a padres e a rezas.

Pois é verdade: ele se meteu numa Kombi com um tanto de gente – o padre José Gonzalez Alonso à frente – e se mandou para Salvador, ver de perto a posse de Dom Avelar como arcebispo primaz do Brasil. Ele não gostava de muitos padres, mas gostava muitos de uns poucos sacerdotes, entre eles o mesmo padre (agora bispo) José e Dom Avelar.

Sim, Antonio Rocha também sempre foi metido a fazer festas. Nos dias de hoje, seriam um promoter. As mangueiras do sítio da família, em União, são testemunhas vivas e podadas de tantas furupas regadas a batida de limão ou maracujá, feitas pelo próprio anfitrião.

Também foi dentista um montão de ano e professor a vida toda, até se aposentar de vez – por obra da vista curta – já passado dos 70 anos. Mas essas facetas são conhecidas: fazem parte do currículo oficial.

O que pouca gente sabe mesmo é que Dr. Antonio também enveredou pelos campos futebolístico, como técnico. Uma espécie de Felipão do Estanhado.

Rocha Júnior, o sexto filho da larga prole, lembra de uma grande partida em que Dr. Antonio colocou em prática os seus conhecimentos futebolísticos. Era inicio dos anos 1970, quanto ele convidou o filho para acompanhá-lo até Porto, quando União enfrentaria a seleção local.

A viagem começou no próprio domingo, dia do jogo, bem cedo da manhã. Era uma total integração: jogadores e torcida, todos juntinhos e apertados, seguiam sentados no piso da carroceria de um caminhão. Na boléia, o motorista e o meticuloso técnico Antônio Rocha. A bem da verdade, olhando para aquela gente ajuntada na carroceria, parecia mais uma ruma de romeiros que delegação esportiva. Inclusive porque, apesar da viagem aparentemente dolorosa, todos mostravam uma enorme felicidade.

O embate entre as duas cidades foi intermediado pelo Antenor Fortes, portuense que passou a morar à época em União, onde também tinha raízes familiares. Ele era um bom jogador e atuaria por Porto. Rocha Júnior não recorda qual foi o critério da seleção dos jogadores unionenses, mas lembra que entre eles estava o Duílio, primogênito do Antônio Rocha, que estudava em Fortaleza e passava férias com a família.

O jogo então começou.
União atuava com camisas amarelas e Porto com uniforme semelhante ao número 1 do River de Teresina – ou do São Paulo, se preferirem.

Duílio ficou no banco, à espera das ordens do duplamente professor Antônio Rocha. A peleja estava disputadíssima. Perto do final do jogo, o placar estava 3x3. Foi quando o árbitro, caseiro, anotou pênalti contra, obviamente, o selecionado de União. O Antenor foi lá e marcou o gol da vitória portuense.

E quanto ao Duílio?
Bem, o nosso técnico ordenou que ele entrasse na primeira metade do segundo tempo. Duílio atuava na lateral e constantemente apoiava o ataque. Antônio Rocha insistia para que ele permanecesse na defesa. E Duílio continuava apoiando o ataque. Diante da desobediência tática do elegante lateral, Antônio Rocha ia se irritando, e mais se irritando, até que chamou o craque na família Rocha à borda do campo e esbravejou:

– Rapazinho, onde você já viu lateral subir ao ataque? Você é maluco?

Por mais que o rapaz explicasse que a seleção brasileira já fazia isso há muito tempo, e dado como exemplo o escrete de 1970, quando o capitão Carlos Alberto fez até gol – o quarto na vitória de 4x1 sobre a Itália, no final da Copa – não teve jeito. Duílio foi sacado do time, e do banco viu, resignadamente e sem poder fazer mais nada, a derrota da gloriosa seleção de União.

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domingo, 7 de março de 2010

Rocha Jr e o Reino da Frejolândia


Antonio Rocha sempre foi, como se diz, de veneta. Em alguns dias, acordava no pleno exercício de seu humor cáustico e muito inteligente, cheio de entrelinhas. Em outros, a sutileza dava lugar a uma irritação que não deixava espaço para as dúvidas. Nesses dias, bastava a pasta de dente cair mais que o normal para ficar irritado.

Pois bem. Rocha Júnior, o sexto filho, lembra com clareza de um desses tais dias em que a pasta caiu fora da escova e a irritação subiu à tona.

Por algum motivo que Rocha Júnior não recorda, Dr. Antonio discutiu com dona Irene. E passou a encontrar todos os defeitos na condução da casa, apesar de todos os cuidados da Irene, num malabarismo que fazia o dinheiro cobrir o mês inteiro. De veneta, esqueceu esses detalhes e passou a reclamar da organização: faltava o mínimo de planejamento, nada estava no lugar.

— Isso aqui virou um frejo.

Para quem não sabe, “frejo” era um modo elegante para dizer que tudo era uma total esculhambação, um verdadeiro cabaré organizacional.

Reclamação feita, Antonio Rocha vestiu a camisa branca de mangas longas e decidiu tomar o rumo da rua. Não satisfeito, antes de distribuir seus apressados passos pelas vias da cidade, chamou Rocha Júnior e ordenou:

— Seu Rocha, venha cá. Pegue uma cartolina bem grande e escreva FRE-JO-LÂN-DIA e pregue bem aqui — disse, apontando para a parede da frente de casa.

Naturalmente que não houve contra-argumentação da parte do filho que acabava de entrar na adolescência. Obediente, o garoto tratou de colocar em prática os conhecidos dotes artísticos que depois o levaria para o campo da arquitetura.

Antes de empreender a tarefa, teve dúvida. Não a dúvida entre cumprir ou deixar de cumprir a ordem. Simplesmente tinha dúvida quanto à grafia. E tratou de dissipar a dúvida com a própria mãe: como se escrevia a tal palavra?

Dúvidas superadas, tratou de caprichar. Pegou a cartolina, fez um rápido esboço e logo estava pronto o magnífico trabalho artístico. Em cores fortes, contrastando com a cartolina branca, estava lá: FREJOLÂNDIA. Não descuidou de nada: com grude de goma, pregou o cartaz logo na entrada de casa. Orgulhoso do trabalho, afatou-se da obra e ficou a média distância por um tempo a espiar, admirando a empreitada.

Algum tempo depois, eis que Antônio Rocha volta para casa e se depara com a vistosa criação. Observou, surpreso, que estava prestes a adentrar no reino da Frejolândia. Mais que rapidamente chamou o artista gráfico da casa e quis saber:

— Que esculhambação é essa?

O filho explicou que apenas tinha cumprido ordens. Veio a contra-ordem:

— Deixe de ser besta e arranque este negócio daí.

Mais calmo do que quando partira, entrou em casa como se não fosse o mecenas da grande obra artística tão caprichosamente executada pelo filho. Mas, para manter o costume, não perdeu a ocasião para mais uma estocada:

— Só existem duas pessoas que realmente entendem de planejamento no Brasil: é a Irene e o João Paulo do Reis Veloso – disse, em referência ao piauiense que à época (início dos anos 1970), era Ministro do Planejamento.
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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Madrugando por Amor à Pátria


O 7 de Setembro em União traz, certamente, muitas lembranças a unionenses de diversas idades.

Depois de 1964, a “Gloriosa” quis impor um patriotismo por decreto. Era gente penando nos porões e a estudantada bradando um amor à Pátria que nem sempre saia a plenos pulmões. Simples: havia um tanto de militarismo que não quer dizer, necessariamente, civismo. E isso incomodava a muitos.

O certo é que todo o país se via obrigado a colocar a estudantada nas ruas. Nem bem começavam as aulas do segundo semestre, no início de agosto, e lá estavam os tambores: bum-bum, bum-bum, bum-bum. E os estudantes pisando como soldados: pam-pam, pam-pam, pam-pam.

Era treino seguido de treino, em todos os colégios. Mas no Ginásio Felinto Rego a coisa era mais caprichada. E mais puxada. Motivo? Dr. Antonio sempre queria que tudo ficasse nos trinques, perfeito.

No dia do desfile, não deixava por menos: a baliza no lugar de destaque, o carro/carroça alegórico preparado com esmero, a banda afinada e os demais alunos em suas alas (dividas por turmas), pisando a um só tempo e com a farda alinhada. (Alguma dúvida? Olhe o comentário anterior, do Aderson Neto)

Antes do dia D, como bem lembra Disraeli (o segundo filho do Dr. Antonio), os treinos eram exigentes.

Disraeli fala de cátedra. Os treinos começavam antes dos primeiros raios de sol apontarem. Pior para os filhos do Dr. Antonio.

— Levanta, rapazinho. Já são quatro e meia da manhã.

Essa era a hora que o Dr. Antonio, professor e diretor do Ginásio Felinto Rego, acordava seus filhos e também alunos do colégio. Tinham que seguir juntos. E Dr. Antonio chegava antes de todos, colocando ordem na casa.

Os ensaios aconteciam no estádio de futebol da cidade durante boa parte de agosto e a primeira semana de setembro. Foi assim por toda a segunda metade da década de 1960 e os primeiros anos da década seguinte. Precisou uma epidemia (quase pandemia) de meningite para que o desfile fosse suspenso um ano. Acho que, depois daí, perdeu viço. Até porque a “Gloriosa” perdia força e a redemocratização estava à vista.

O treinamento diário começava religiosamente às 5 horas da manhã, sob as luzes das fogueiras feitas especialmente para o evento, após as “chamadas” nominais, turma por turma.

As freqüências dos alunos eram praticamente 100%. Só faltava quem realmente não podia comparecer, pois sabiam que a disciplina tinha que ser observada. A falta sem justificativa não passava barato: acabava em, pelo menos, três dias de suspensão.

Ah, lá pelas seis e pouquinho, o ensaio chegava ao fim. Era preciso ter uma margem de tempo para o deslocamento dos que estudavam pela manhã até o Ginásio. A aula começava às 7 horas. E Dr. Antonio queria todos outra vez prontos, em sala, contritos e atentos aos ensinamentos dos professores.

Para muitos alunos, no entanto, difícil era manter os olhos abertos.
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Antonio Rocha e o 7 de Setembro


Aderson de Castro Soares Neto.
É um nome comprido. Mas, resumido, tem um tanto de poesia: Aderson Neto, ou Adersoneto, como ele registrou no e-mail.
Hoje, exatamente hoje, ele está de passeio por Espanha. Mas trabalha mesmo na Avenida Paulista, bem representanto o Piauí, lidando com dinheiro dos outros no pedaço mais rico do Brasil.
Pena que o dinheiro seja do BB e dos empresários depositantes.
Mas, independente do saldo bancário do Aderson, ele é um dos que sempre teve uma atenção especial com a memória de União. E aí está um texto dele, a propósito do 7 de Setembro no Velho Estanhado.

Quem foi aluno do Ginásio Estadual Felinto Rego (depois modificado para Unidade Escolar) nos idos da primeira metade da década de 1970 jamais poderá esquecer os desfiles de 7 de Setembro!

Cada um dos saudosistas que agora nos lêem tem o direito de denominar de Semana da Pátria, Parada de 7 de Setembro, Desfile da Independência do Brasil, o que quiser. O que não posso é dar o direito a esses contemporâneos de esquecerem o zelo, a determinação e a importância que o nosso Doutor Antonio Rocha dava ao evento.

Lembrança imediata: ele com sua indefectível mão alisando o queixo enquanto media as – duras – palavras que ia dirigir aos incautos que marchavam fora do compasso ou que se lhe dirigiam com um dos pés numa sandália havaiana (ou japonesa, lembram?) e o dedão enrolado em esparadrapo!

Milagre seria não ouvir um “olha aqui, rapazinho, o senhor agora está doente para marchar, mas não estava para fazer danações pelos corredores do ginásio”...
A salvação era um atestado médico do Doutor Felinto ou então podia aguardar uma suspensão com outra frase fatal: “o senhor tem três dias para ficar refletindo em casa!”.

Doutor Antonio tinha outra característica fantástica para a Escola da época – era um precursor do ensino interativo: como esquecer as aulas na biblioteca diante do globo terrestre onde o aluno 'via' os países que ele descrevia com tanta propriedade?

Quando tinha prova oral já se esperava a pergunta com o coração na boca: 'Senhor fulano: onde fica a Rússia e quais os seus principais produtos agrícolas?' Se o rapazinho fosse com o dedo indicador rumo a outro continente, desse um passeio pela América ou tremesse as mãos rumo à África, podia esperar um sonoro “pode sentar” sem maiores explicações. E a nota? Ai de quem ousasse perguntar!

Mas o tempo realmente é o senhor da razão – como bem disse o filósofo. Passados os anos e hoje investido na relevante função de professor é que percebo que onde se via dureza, era a mais pura dedicação; onde se achava ser rigor excessivo, era a necessária disciplina para gerir tanta gente e a escassez que sempre permeou a Educação.

Anos passaram-se, mas quando numa pós-graduação na PUC do Rio de Janeiro perguntaram-me a diferença entre professor e educador a resposta foi imediata: “Doutor Antonio Rocha, lá em União, no Piauí!”.

Por tabela a memória puxa a meiguice de “Dona Irene” que a todos chamava “meu filho...'"

Aderson Neto
Unionense filho do Chico Medeiros e da dona Nazi, é poeta, bancário do BB e professor na sala de aula e na vida.
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Uma mágica para salvar o feiticeiro


Seu Modestino sempre foi festejado por um certo poder espiritual.

Macumbeiro conhecido, rezou em metade dos unionenses e num outro tanto de visitantes que chegavam à cidade para se valer de suas relações privilegiadas com as "entidades".

Mas nem sempre a coisa funciona. E às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro.
Quando isto acontece, o jeito é apelar para algum mágico de plantão.

Foi o que aconteceu nos idos da década de 70. O mágico encontrado foi Dr. Antonio, a quem a família de Seu Modesto apelou na hora do aperto.

A bem da verdade, Antonio Rocha sempre foi um faz-tudo. Odontólogo de formação, agrônomo e professor por paixão, também se fez de médico por imposição das circunstâncias. Por muito tempo, era o único na cidade que tinha alguma formação médica, por conta dos dois anos de Faculdade em que o curso de Odontologia e o de Medicina faziam as mesmas cadeiras – só a partir do terceiro ano é que cursavam as cadeiras específicas dos dentistas. Sem médico na cidade, os doentes batiam à porta do Dr. Antonio, a qualquer hora do dia ou da noite. E assim, costurou rasgos de peixeira, emendou queixo espedaçado por machadada e engessou braços quebrados em todo tipo de estripulias.

Mas nem todos buscavam os conselhos e as receitas do Dr. Antonio. Muitos terminavam nas garrafadas do Seu Modestino. E foi aí quando o feitiço virou contra o feiticeiro.

Dr. Antonio sempre defendeu o trabalho dos macumbeiros. Não que acreditasse nos seus poderes de cura e de realizar "trabalhos" especiais. Simplesmente porque achava que eles podiam curar muitos males que eram produto da própria imaginação dos enfermos. Isto é, as doenças psicossomáticas desapareceriam na hora em que o doente acreditasse que as garrafadas seriam um santo remédio.

— Mais de 90 das doenças são produto da própria mente do doente — dizia e repetia, amparado em pesquisas que viu publicadas em alguma das muitas revistas que devorava.

E se era assim, a crença no poder do macumbeiro era suficiente para produzir a cura. O doente se curava.

Dr. Antonio cursou Odontologia na Bahia e freqüentou os terreiros, nas aulas práticas de um professor que procurava mostrar o aspecto científico da relação entre a entrega religiosa e os efeitos sobre o corpo. Viu muita gente "baiar" até entrar em transe, perdendo os sentidos a ponto de não sentir a pele queimando pela brasa do cigarro que o tal professor empurrava.

Pode-se dizer, Dr. Antonio cultivou uma relação amistosa com os macumbeiros – e dois tiveram terreiros quase ao lado de sua casa, no bairro São João, em União. Um deles, charlatão assumido, não gozava da amizade do professor; era só convívio protocolar. O outro era precisamente Seu Modestino, que fazia seu trabalho sem alarde, dava passe nos crédulos, benzia para afastar olho gordo e receitava gororobas para por fim aos males do corpo. Este era boa-praça e tornara-se seu amigo.

Uma certa tarde chegou a notícia: Seu Modesto estava preso.

Quem levou a notícia foi a esposa do macumbeiro, que nesta época já morava no São Felipe, na estrada que liga União a Teresina. A mulher tinha ido à casa do professor pedir socorro. Em concreto, queria que ele se valesse se sua, digamos, notoriedade e de seu prestígio para libertar o curandeiro das grades da cadeia pública.

Dr. Antonio quis saber os motivos da prisão. Logo tomou conhecimento que Seu Modesto fora denunciado pela família de um cliente, que havia morrido após iniciar tratamento com o macumbeiro.

O professor vestiu a camisa branca de margas compridas e seguiu para a cadeia. Chegou lá cumprimentou o delegado e quis mais detalhes. Foi informado que Modestino era acusado de matar o cliente. Que receitou uma garrafada para curar o doente e acabara por matá-lo. Agora, ali estava o curandeiro entre as grades.

Tranqüilo e sem mudar o tom de voz, Dr. Antonio quis saber:
— Cadê a gororoba?
— Também está presa — disse o delegado, altivo, apontando uma garrafa recheada de pedaços de plantas e um tanto de aguardente.

O professor pediu licença e pegou a garrafa. Conhecia todas as plantas que estavam ali, usadas como recurso medicinal. Havia pedaço de pau d’arco, umas folhas de matruz e um naco de gengibre. Também podia-se ver fragmentos de embaúba, quebra-pedra e até folhas de cidreira. Cada coisa tinha lá sua indicação. Juntas, não se sabe mesmo para que serviam.

Dr. Antonio sacudiu bem a garrafa. Virou uma e outra vez. E então se dirigiu ao policial:

— Me arranje um copo.

O delegado estranhou o pedido. Mas atendeu.

O professor abriu a garrafa e encheu o copo. Tomou tudo de uma talagada só, para espanto do policial.

— Delegado, solte o homem. Se eu morrer, prenda de novo.

Diante do atônito policial, Dr. Antonio completou, exibindo a garrafada:

— Delegado, isso pode até não fazer bem, mas com certeza não faz mal a ninguém.

Alguns minutos depois, Seu Modesto estava retornando para seu terreiro. E Dr. Antonio seguia para casa. Tinha uma certeza: a gororoba não matara ninguém. Apenas não tinha podido fazer o milagre de salvar o cliente do macumbeiro porque, certamente, não tinha uma doença psicossomática, e sim um mal físico que a crença sozinha não podia combater.
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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Gonzaga Pierot e o Felinto Rego


Fui aluno do Ginásio Felinto Rêgo de 1970 a 1973. Fui da primeira turma de 1ª série do Ginásio que não fez o quinto ano de admissão.

Fiz as provas do 5º ano nas férias e fui direto do 4º ano primário para a 1ª série do Ginásio. Fui companheiro de sala do seu filho Rocha Júnior. Pude testemunhar não só a qualidade do professor, como a sua disciplina.

Escutei o “mocinho, já para casa” duas vezes por chegar na sala de aula depois de tocar a campainha.

Exagero? Pode ser. Mas com seus filhos ele fazia pior, para dar o exemplo.

Uma vez ele ofereceu carona ao Rocha Júnior no seu carro. Ele estranhou, pois era fato que não acontecia na rotina diária. Apesar da distância de sua casa para o Ginásio, ele vinha sempre no “pé dois”. Naquele dia ele estranhou, mas aceitou.

No trajeto, de vez em quando olhava para o Rocha júnior, mas não dizia nada. O filho ia ficando cada vez mais “cabreiro”. Ao chegarem na porta do Ginásio, o Dr. Antônio olhou mais uma vez para o Rocha Júnior e disse: Rapazinho, esse seu cabelo está muito grande. Vá cortar e depois vá já para casa.

O Rochinha, sem saber o que fazer, apenas disse:

− Me dê o dinheiro para cortar.
− Isso é com a Irene − respondeu.

Eu era e ainda sou fã do Dr. Antônio, das suas aulas de Geografia. Sem anotar nada, apenas de cabeça, ele nos transportava para um mundo distante ao descrever as cidades, estados e países.

Sabíamos no mínimo as cinco principais cidades de cada estado e, dessas, suas características econômicas e geográficas. Sabíamos os países e suas capitais e suas características econômicas e geográficas. Quando viajei ao Paraná, atravessando quase todo o Brasil, era como se aquelas cidades já fossem nossas velhas conhecidas.

Dr. Antonio era e é um homem à frente de seu tempo. Fazia os discursos dos principais políticos de União, desde as campanhas até o da posse. Podemos dizer sem medo de errar que, por muitos anos, ele foi a pessoa mais bem informada de União.

Era por essa sua capacidade intelectual e moral que ele muitas vezes demitia professores e funcionários indicados por políticos e mantinha sua decisão mesmo diante dos apelos dos políticos, numa época que eles mandavam muito mais do que hoje.

Na sua administração no Ginásio ele não se preocupava apenas com a formação teórica. Sempre teve a preocupação com a prática, implantando escolas de datilografia (que foi muito importante para eu conseguir meu primeiro emprego no Paraná) e laboratórios.

Ao chegar no Paraná, baixinho, com sotaque “baiano” como eles diziam, no final do ano do 1º ano do 2º Grau já era o primeiro da sala. Era o padrão de qualidade do Ginásio Felinto Rêgo em ação.
Abraços,

Luís Gonzaga Sampaio Pierote
Teresina, 01 de fevereiro de 2010.

PS.:
Gonzaga Pierot é um unionense porreta que já andou meio mundo, sempre com muito sucesso e competência.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Jacó Sampaio, a Bolota e a suspensão


Sem dúvida o Dr. Antônio, "O Careca" ou o "Rocha", como era chamado pelos alunos do ginásio, tem sua participação marcada na minha adolescencia.

Ele costumava ministrar suas aulas de Estudos Sociais (com ênfase em Geografia) na biblioteca. A biblioteca era o local ideal, pois como tinha varios mapas, isso facilitava as aulas de geografia, mas, como as mesas não eram individuais, facilitava também as conversas paralelas. Eu, como era um tagarela, certamente fui chamado atenção, muitas vezes, pelo Dr. Antônio, que la pelas tantas soltava um: "Seu Jacó, fecha essa matraca ai!...", mas como eu era um bom aluno, não recebia maiores punições.

As aulas eram após o recreio. Certa vez, eu fiquei na sala lendo uns gibis da Maria Alzira, não percebi o fim do recreio e acabei esquecendo da aula na biblioteca. Como eu era um tagarela, e não faltava às aulas, o Dr Antônio sentiu a minha falta. Quando perguntou por mim, o pessoal falou que eu tava na sala.

Ele foi até a sala ver o que estava acontecendo. Quando eu percebi foi só aquela careca passando pelos congombós. Pensei comigo: "ih, tô frito!

Ele pegou o gibi, olhou. Era aquele gibi da Bolota. Olhou pra mim, soltou a sentença: "Seu Jacó, o sr. tem três dias de suspensão prá ler bolão em casa!". Quando relembro a cena dou risadas, mas nós tínhamos um medo descomunal do Dr. Antônio.

Para mim é uma honra ter sido aluno desse grande homem, que foi responsável pela formação educacional de várias gerações de unionenses. Se hoje sou Engenheiro Civil, Mestre em Informática, certamente o Dr. Antônio tem sua particicipação marcada na minha formação.

Grande abraço. E transmita um grande abraço ao Dr. Antônio por mim

Jacó Sampaio
(Unionense, Engenheiro bilhante, cumprindo exílio voluntário no Paraná)
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A árvore genealógica dos Rocha

Quem gosta mesmo das referências antepassadas é o Dilson, além do próprio Antônio Rocha (pai). Mas ei que a contribuição vem do Rocha Júnior - que é o quarto Antonio Martins da Rocha na linhagem nobre da família, conforme do próprio faz questao de colocar no quadro exposto neste post.

Vejam que os Martins da Rocha vem de longe, desde o berço lusitano. Aqui no Piauí, as referêcias principais são as cidades de Jerumenha e Bertolínea, além de União.

O que está neste quadro é só a linhagem direta. Não há referências a outros nomes, mais ou menos ilustres, como o Visconde de Parnaíba, que foi governador da província do Piauí por uns 20 anos. Tampouco figuram nomes menos votados - se bem que Souza Martins, o Visconde, não precisou ser votado para chegar ao posto maior.
De qualquer forma, aí está o registro cuidadosamente compilado pelo Rocha Júnior a partir do livro Dados Genealógicos da Família Rocha, do Sebastião Martins de A. Costa; José F. de S. Rezende; e Moacyr S. da Rocha.



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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O aprendiz de motorista

Possivelmente, até ele concorde: se fosse motorista profissional, Antonio Rocha morreria de fome. Sempre foi o que se chama de um “roda presa”. Além disso, nunca soube da existência da correia dentada ou do carburador; tampouco tem conhecimento de onde se esconde o radiador ou mesmo para que serve a chave de roda.

Quando juntava uma coisa com a outra, o estrago estava feito.

Pois esse candidato a Rubinho Barrichelo comprou, em 1974, um Corcel GT. Um carrão, bonito e esportivo.

Todos os dias seguia para o Ginásio Felinto Rego montado na máquina. Um dia, a meio caminho, percebeu que o carro puxava para um lado. Parou. Desceu. E viu: o pneu estava furado.

Sem muita intimidade com as ferramentas, deixou o Corcel estacionado. E pediu que um garoto avisasse aos filhos, em casa. Eles que cuidassem do pneu furado.

Ao chegar à quinta da família Rocha, o garoto deu o recado para Fenelon, o sétimo de dez filhos do professor com dona Irene.

O carro estava estacionado a uns sete quarteirões de casa – quase um quilômetro de distância. Fenelon resolveu que deveria trazer a máquina para casa.

Seguido de outros irmãos, entre eles Dílson – o oitavo dos rebentos –, seguiu para providenciar o resgate. Pensava em trocar o pneu e, depois, empurrar o veículo até a garagem doméstica, em forma de latada. E assim estava sendo feito.

Pneu trocado, Fenelon tomou a direção e um magote de menino se prontificou a empurrar o carro. Depois de percorrido uns 100 metros, Fenelon meteu a segunda e deu a partida no motor. O carro estava funcionando e ganhou velocidade. Fenelon estava dirigindo.

Era a primeira vez. Antes, o máximo que tinha feito era ligar o carro e deixar o motor esquentando até que o pai tomasse o mando da direção e rumasse para o Ginásio. É verdade, o rapaz treinava o engate das marchas, enquanto o carro estava parado na garagem. Mas dirigir, de verdade, nunca antes.

Levou o carro até a casa e colocou debaixo da latada, antes fazendo o parachoque beijar levemente um pé de guabiraba. Quando Dr. Antonio chegou à noite, o carro estava em casa. Fenelon já dormia. Devia sonhar – ou ter pesadelos – imaginando a reação que Dr. Antonio teria, ao saber que dirigira o carro sendo um menino do buchão e, pior, sem nunca ter dirigido antes.

No outro dia, bem cedo, o professor encara o filho e pergunta:
− Foi você quem trouxe o carro?
− Foi − respondeu o filho, sem convicção e sem saber que reação esperar.
− Pois vamos me deixar no Ginásio.

A reação foi surpreendente. E trazia outro desafio: dirigir o carro pela segunda vez e tendo Dr. Antonio do lado. Um sufoco.
Fenelon tomou o mando do Corcel e rumou para o Ginásio. Chegou ao destino sem sobrassaltos, estacionou direitinho e passou a chave para o dono da máquina.

− Muito bem – limitou-se a dizer.
Em casa, no entanto, Dr. Antônio passou à gozação. Ria do nervosismo do recém-promovido a motorista e da trajetória sinuosa que traçava no meio da rua.

− Não sei como, ele encontrava esquina no meio da rua − dizia, entre risos.

****
Por certo, é melhor ri dos outros que ser o motivo do riso alheio. E o “motorista” Antonio Rocha era de causar gargalhadas.
A inabilidade do Dr. Antonio com os automóveis ganhou as ruas de União em forma de piada. Os piadistas atacavam, especialmente, a lentidão do professor ao volante. Era quase como uma tartaruga. Uma espécie de Rubinho do Estanhado. Claro, virou piada.

Isso aconteceu logo depois que comprou o tal Corcel GT.

O carro, modelo 69, era imponente, bem vistoso, todo vermelho com uma larga tarja negra sobre o capô, da tela frontal até o início do pára-brisa. Despertava a cobiça dos esportistas, já que um carro com motorização mais forte e um desempenho mais agressivo.

Segundo as más línguas unionenses, um dia Dr. Antonio resolveu explorar o potencial do possante, colocando à prova não só os limites do veículo como sua capacidade de motorista.
Seria uma prova com testemunha. Ou melhor, testemunhas, já que junto estava a espora, Irene, e o caçula, Délio, por essa época um meninote que carecia de cuidados especiais como cabe a toda criança.
Antônio Rocha se aprumou no banco do motorista, ao passo que dona Irene e Délio foram se acomodando ao lado, no banco do passageiro. O professor ligou o motor, deu umas duas aceleradas – uma delas bem profunda e duradoura, para esquentar o motor. Meteu a primeira e advertiu aos companheiros de aventura:

− Irene, segura o Délio que eu vou puxar 20.

Era assim. Quando passava de 20 km/h era uma proeza.
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domingo, 31 de janeiro de 2010

e-Mail do Professor Lourival Lopes

Meu caro Fenelon Rocha:
Há muito tempo que eu esperava essa atidude (porque idéia eu sei que você já tinha há anos) de sua parte. Jornalista brilhante, professor competente, você não poderia fugir da responsabilidade de resgatar as memórias de seu querido pai.

O Dr. Antonio, sem dúvida, marcou (no sentido latino da palavra "educere") a vida, no mínimo de três gerações (décadas de 60, 70 e 80).

Criticado por alguns, amado por muitos, o Dr. Antonio é daqueles professores abnegados, desprovido de quaisquer interesses pessoais, cujo prazer está apenas na arte de ensinar.

Outro dia fui visitá-lo e lá estava ele com um livro sobre a II Guerra Mundial de mais de seiscentas páginas todo marcado nas partes que ele considerava mais importantes. O que leva um professor aposentado de 86 anos a continuar com leituras de obras didáticas sobre aquilo que mais fez na sua vida de professor? A única resposta possível é o amor pelo conhecimento.

O dr. Antonio Rocha é uma pessoa de profundo conhecimento geral, e muito atualizado. Fico imaginando um homem desse, com tamanho saber e memória de computador, utilizando-se da internet.

Parabéns, meu caroFenelon, pela iniciativa. Tenho certeza de que você terá muito trabalho em selecionar as estórias e histórias daqueles que tiveram a honra de ter sido aluno do Prof. Antonio Rocha. Professor com letras maiúsculas.
Um abraço do admirador.

Lourival da Silva Lopes
(Unionense e professor dedicado a formar gerações)
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Uma relação não muito católica (2)

Este tópico é seqüência do do anterior, sobre a difícil relação do Dr. Antonio com os padres, em especial Padre Isaac Vilarinho e Padre Emídio Andrade.

PADRE EMÍDIO:
As desavenças com o padre Emídio Andrade começaram pouco tempo depois do sacerdote chegar a União.

Como fazia sempre, Dr. Antonio convidava o pároco – como também o juiz – para dar aulas no Ginásio Felinto Rego. Era uma forma de assegurar professores de boa formação. Não foi diferente com padre Emídio.

Nas primeiras semanas de aula, no entanto, o padre causou estranheza. Chegou no ginásio de sandália currulepo. Para Dr. Antonio, que exigia aprumo dos alunos, passava um pouco da conta. E reclamou.

Padre Emídio não gostou. Daí em diante, alimentou uma animosidade profunda. Primeiro, tentou arrebatar o posto de diretor do Ginásio, buscando apoio inclusive na cúria diocesana. Não surtiu efeito. Mas o sacerdote não desistiu.

O confronto culminou com uma denúncia formal à Secretaria de Educação do Estado contra o diretor. Entre outras coisas, acusava-o de relapso e de centralizador. Uma verdade e uma mentira. Dr Antonio sempre foi centralizador. Relapso, jamais.

O professor tomou conhecimento da denúncia em uma de suas visitas à Secretaria, quando foi informado por um dos muitos amigos que mantinha por lá. Teve acesso à denúncia, cheia de assinaturas, muitas delas falsificadas – diversos nomes tinham a mesma grafia, indicando que uma mesma pessoa assinara por outras. Mas também havia diversas assinaturas verdadeiras, de pessoas ligadas à igreja e ao padre.

A única assinatura que não constava era a do padre. Mas fora ele mesmo o responsável pela entrega do documento. A denúncia tinha DNA conhecido.

O esforço do padre para tirar Antonio Rocha da diretoria do Felinto Rego não prosperou. Apesar do gênio forte, ela conhecido como bom gestor e, principalmente, como um educador preocupado com a qualidade do ensino. Sabia-se em todo o Piauí: os egressos do colégio estadual de União tinham boa formação e eram adversários duríssimos em qualquer concurso público.

Apesar do empenho do padre, a denúncia foi arquivada. E logo Antonio Rocha teria a chance de dar o troco.

A chance veio nas comemorações dos 10 anos de fundação do Ginásio Felinto Rego, no dia 13 de junho daquele ano de 1967. Havia representantes de outras cidades. E o próprio secretário de educação, padre Baldoíno Barbosa de Deus, prestigiava o evento.


O primeiro toco veio quando, na formação da mesa de honra, o diretor não chamou o padre. O secretário presidia a solenidade e passaria a palavra ao primeiro orador, precisamente o professor Rocha.

O conteúdo do discurso era do conhecimeto de uns poucos. Escrito à mão pelo professor, fora datilografado por José do Egito Vasconcelos, funcionário do Banco do Brasil que se afeiçoara muito ao professor. José do Egito preocupou-se e advertiu ao deputado José Raimundo Bona Medeiros. Este pediu que Dr Antonio maneirasse no tom das críticas.

Não adiantou.

− Zé Raimundo, eu não sou diretor. Eu sou é professor. Se quiserem, podem me tirar da direção – disse, reafirmando a intenção de pronunciar o discurso.

O conteúdo tinha endereço mais que claro. E ele estava bem ali na frente, sentado na platéia, escutando. Em certo trecho da fala, Antonio Rocha dizia:

− Lutamos há 10 anos. Inicialmente, contamos com o apoio dos otimistas. Em seguida, transformamos em aliados os pessimistas. Mas não pudemos, nem devemos, perdoar aqueles que desejaram e continuam hoje a desejar o nosso fracasso. Por não possuírem a coragem para o combate leal, o combate frente a frente, preferem o anonimato, que é o apanágio dos covardes.

Padre Emídio sofreria duas derrotas. Primeiro, viu ali mesmo na solenidade um discurso de Baldoíno Barbosa de Deus que era de claro apoio ao diretor do Ginásio.

− Os meus problemas no Estado são bem maiores que os do Professor Rocha aqui. Mas a obrigação dele, como a minha, é tirar as pedras do caminho e seguir em frente.

Diante daquele desfecho, o padre se viu enfraquecido. Vinte dias depois pediu demissão do Ginásio. Não havia conseguido ser diretor. Então não queria ser professor.
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Uma relação não muito católica (1)

A relação de Dr. Antonio Rocha com os padres nunca foi, pode-se dizer, muito católica. Na verdade, sempre teve um pé atrás com os padres – ou pelo menos com a maioria deles. Sempre desconfiava de suas boas intenções, vendo na atuação dos sacerdotes muito interesses bem mais terrenos que divinos.

O professor recorria ao próprio Pai Nosso para traduzir o que pensava dos padres:

− É só Venha a Nós. Ao Vosso Reino, nada.

Tinha lá os seus eleitos. Admirava Dom Avelar Brandão Vilela a ponto de forma uma caravana para sua posse como Primaz do Brasil, em 1971. Também sempre se derreteu em elogios ao padre Luís Brasileiro e a dois espanhóis que desembarcaram em União no final dos anos 60: padre Xavier e padre José.

Creio que tinha uma certa predileção pelo padre Xavier, que gostava de fumar e bebê – tal como Dr. Antonio. Xavier também era pouco convencional, a ponto de fazer o percurso entre União e Teresina em meia hora – num Fusca, e num tempo em que a estrada ainda era de piçarra. Coisa de louco, tanto que poucos aceitavam carona com o espanhol voador.

Padre José Gonzalez Alonso não é mais padre. É bispo, à frente da diocese de Cajazeiras, na Paraíba. Mas na memória dos unionenses segue simplesmente “Padre José”, um homem tranqüilo, muito culto e sempre atencioso. “Um sujeito 100%”, no dizer de Antônio Rocha.

Nas contas do professor, no entanto, outros padres simplesmente não contam. Ou, se contam, estão numa conta com resultado negativo. Nessa listam estão Emídio Andrade – que deixou a batina – e Isaac Vilarinho, que chegou a monsenhor.

Neste tópico, vai apenas a história do padre Isaac. No seguinte será a vez do padre Emídio.

PADRE ISAAC:
Quando foi pároco de União, no início dos anos 60, padre Isaac tinha atitude que às vezes gerava atrito com as lideranças locais. Causava especial desconforto o aberto apoio que dava ao movimento dos trabalhadores rurais. Mas isto não afetava Dr. Antonio, tampouco é a razão para as críticas que faz ao depois Monsenhor Isaac Vilarinho.

Tudo está vinculado aos importantes registros históricos que o pároco fez desaparecer. Uns 35 anos depois, os ecos daquela tragédia histórica ainda eram ouvidos. E mantendo o desconforto.

No final da década de 90, um grupo de oeirenses chegou a União. O grupo representava o Instituto Histórico de Oeiras e tinha à frente o desembargador José Luís Martins de Carvalho, que servira em União como juiz e professor do Ginásio Felinto Rego, dirigido pelo professor Antonio Rocha.

Pelo conhecimento minucioso da história do município desde os tempos em que ainda era a fazenda Estanhado, o professor foi chamado pelo prefeito Edmilson Mota para receber o grupo. A intenção dos oeirenses era resgatar informações a respeito de um conterrâneo ilustre, Manoel Clementino de Souza Martins, que havia morrido em terras unionenses, na luta contra os Balaios.

O professor sabia dos detalhes:

A luta contra os balaios aconteceu entre 1838 e 1840. Clementino era sobrinho do então governador da província, Manoel de Souza Martins, o Visconde da Parnaíba. Morreu em combate, no local hoje correspondente ao povoado Santa Rita, município de União. Recebeu ali mesmo as honras militares e o reconhecimento da igreja, sendo sepultado na própria matriz de Nossa Senhora dos Remédios. O templo tinha começado a ser construído alguns anos antes e só ficou totalmente acabado em 1865. As sepulturas tinham sido conservadas durante as obras.

− Gostaríamos de conhecer a sepultura de Clementino – adiantou o desembargador José Luís.

− Infelizmente não vai ser possível – avisou o professor.

Foi quando revelou toda a tragédia patrocinada pelo padre Isaac.

Naquele início dos anos 60, Isaac Valarinho queria reformar a igreja matriz. Conseguiu apoio e dinheiro e passou-se à reforma. E lá estavam umas seis sepulturas, coladas na parede lateral do lado direito da porta de entrada.

O padre não gostava das sepulturas. Alheio à importância daqueles registros históricos, aproveitou a reforma e mandou arrancar tudo, despejando os restos em uma vala do cemitério.

− Pelo menos podemos ver a sepultura no cemitério? − quis saber o desembargador.

Não podiam. Agora, nada mais restava, nem mesmo uma indicação da vala que recebera os restos dos seis antepassados. Os oeirenses fizeram o caminho de volta. Deixaram em União, muito vivas, as críticas do professor contra o padre Isaac e seu “crime contra a história”.

− Padre Isaac foi péssimo, mais do que péssimo com a história de União.

(acima, veja o tópico sobre padre Emídio).

sábado, 30 de janeiro de 2010

O e-mail do Prof. Cantídio Filho

Dr. Antônio está guardado na minha memória, desde quando eu era aluno e ele diretor do Ginásio Felinto Rego, em União. Convivi e apreendi sobre disciplina, história e geografia.

Dono de uma personalidade rígida e sábia, Dr. Antônio foi responsável pela formação de gerações de estudantes unionenses que incorporaram marcas que carregam para a vida. No seu tempo de diretor e eu de aluno, Dr. Antônio, não permitia aluno com cabelo grande ou sem o uniforme devidamente arrumado.

Quando batia a campainha e o aluno ficasse conversando nos corredores, estava lascado. Aluno fazer algazarra, nem pensar! Era logo chamado à diretoria para uma conversa de pé de orelha e possivelmente uma suspensão. O pior era que o aluno suspenso levava um comunicado aos pais informando sobre os motivos da suspensão.

Triste de quem tentava fazer bagunça em sala de aula, quebrar carteiras, riscá-las, enfim fazer molecagem, como dizíamos na primeira metade dos anos 80. Quando faltava um professor, ele substituía e recitava aulas de história e geografia com infinita sabedoria.

Dr. Antônio é protagonista de uma época em que o modelo de educação tinha uma linha autoritária, contudo, para o contexto da época, necessário.

Naquela época tínhamos certeza que a escola pública não era uma casa de mãe Joana. Ela tinha uma hierarquia, era mais respeitada, produzia conhecimento. Afinal, o conhecimento, sempre lhe foi companheiro. Basta ver, o Dr. Antônio escrevia grande parte dos discursos das autoridades políticas do município de União.

Tenho certeza que caso atuasse como educador na contemporaneidade, Dr. Antônio saberia dosar compromisso, autoridade, diálogo e amor. Com isto a escola pública com certeza cumpriria o seu dever até mais do que muitas da iniciativa privada, cuja maioria envereda pelo lucro fácil em detrimento de uma formação mais humana, responsável e cidadã. Educadores como Dr. Antonio e o professor de português e literatura, Pedro Reis fazem falta e, como fazem nos dias de hoje, principalmente na escola pública.

Um grande abraço,

CANTÍDIO FILHO
(Unionense, Jornalista e Professor da UFPI)

O Perseguido não oficial


Quando desembarcou em União nos primeiros anos da década de 70, Pedro Reis trouxe na bagagem uma suspeita. Não se sabia ao certo, mas dizia-se que estava fugindo.

Não se dizia claramente, até porque vivia-se os anos duros da ditadura militar. Era o governo Médici. Tempo de sussuros.

A Arena mandava e desmandava em União. Mesmo assim, a ditadura causava sobressaltos. Anos antes, Antônio José Medeiros fora preso.

Antonio José era um contestador, dentro do molde da Faculdade de Filosofia, onde estudava. Na faculdade, de orientação católica, bebia nas fontes filosóficas e na cartilha do Concílio Vaticano II, que estimulou o surgimento de uma igreja católica mais comprometida com as questões sociais. Por conta disso e das andanças pelos bairros pobres da zona sul de Teresina, acabou preso na capital.

O professor Antônio Rocha chegou em casa com a notícia:
— Eita, o filho do Pindunga foi preso – disse, levantando as sobrancelhas e franzindo a testa em sinal de preocupação.

Quando Pedro Reis desembarcou, vindo do Mato Grosso, Rocha não disse nada. Pelo menos que os filhos pudessem ouvir, nada! Mas os comentários circulavam pela cidade: o novato era um fugitivo.

A imprecisão da informação dava asas aos comentários. Havia quem dissesse que fugiu de um compromisso matrimonial. Outros, que tinha contas a pagar com a justiça. Mas a grande maioria dizia que era um comunista – e que se esquivava das garras da ditadura.

Não custa repetir, era tempo de Médici, quando o clima de perseguição estava no ar, palpável

Apesar dos rumores, Antonio Rocha convidou Pedro Reis para dar aula no Ginásio Felinto Rego. Foi um dos melhores professores que o Ginásio já teve. Tinha mais ou menos a mesma linha do diretor: não se preocupava apenas em ensinar a matéria – no caso de Pedro, inglês e Português – mas provocava, estimulava a pensar.

Em pouco tempo, conquistou um mundo de admiradores, especialmente entre os alunos. Mas não faltavam os desgostosos, especialmente entre os mais tradicionais que não viam com bons olhos aquele professor metido entre os alunos e vivendo sozinho num quarto ao lado da loja do seu Perico.

Um certo domingo chega a União o professor Manuel Paulo Nunes, que funcionava como inspetor federal para a área da Educação. Quer dizer, fiscalizava as escolas para conferir os aspectos administrativos e pedagógicos.

Ao chegar, foi direto procurar o diretor do Ginásio. Amigo de Antônio Rocha de longas datas, não arrodeou:

— Rocha, você tem aqui um professor que é procurado pela polícia política.

O diretor ficou estático por alguns momentos. Seguia com a cabeça levemente levantada, olhando Paulo Nunes pelo arco inferior das lentes bifocais. Sabia de quem falava. Mas não passou recibo.

— Danou-se – limitou-se a dizer, enquanto levantava a mão esquerda para apertar a ponta do queixo com o indicador e o polegar.
Paulo Nunes repetiu a informação, também serenamente. Rocha quis saber o que aquele comunicado significava.

— Você veio fazer a notificação? – perguntou.

Não. Paulo Nunes estava ali mais como amigo que na condição de inspetor. Queria alertar e evitar problemas.

Recebera a informação e sabia que a qualquer momento poderia haver uma ordem expressa dos representantes militares. Nesse caso, as medidas não tinham um parâmetro: podia resultar na pura e simples demissão do professor ou até mesmo na prisão. Podia sobrar inclusive para o diretor, apesar de integrante da Arena.

Depois de um breve silêncio, Paulo Nunes revelou que a informação ainda não era oficial. Mas o relatório em mãos da polícia política qualificava Pedro Reis como um comunista de grande atividade subversiva pelas bandas do Mato Grosso. Apesar de não ter nenhuma denúncia formal contra Pedro, o matrogrossense era visto como um fugitivo. Simplesmente porque, naquele tempo, criminoso era quem a ditadura queria que assim fosse.

Depois de um pequeno silêncio, Paulo Nunes e Dr. Antônio chegaram a um acordo: enquanto não houver nenhuma ordem formal, nada se faz. Nem da parte da inspetoria da educação, tampouco da diretoria do Ginásio.

Seria como se nenhum dos dois soubessem do caso.

Pedro foi comunicado por Antônio Rocha da pressão que começava a sofrer. Decidiram que seguiria dando aulas – e que o assunto permaneceria em segredo.

Logo Médici deixou o posto e Geisel assumiu prometendo a abertura lenta, gradual e segura. É verdade que a abertura levou dez anos até se transrformar em democracia. Mas a atitude de Paulo Nunes e do Dr. Antônio permitiu que Pedro seguisse seu ofício de dar aulas e formar pessoas.

Anos depois ele mudaria para Teresina, onde também se destacou como um dos grandes professores de diversos colégios da capital.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Felinto Rego, 50 anos


Na década de 70, uma frase tomava conta dos cursinhos pré-vestibular de São Paulo: “quer passar, mate um japonês”. Na mesmo época (e nas duas décadas seguintes), uma frase semelhante podia ser escutada em cidades como Recife ou Campina Grande: “quer passar, dá um chega-prá-lá num piauiense”. A frase em relação aos piauienses também incluía os concursos públicos, sobretudo para cargos como juiz e procurador.

A enorme presença de nipônicos (ou descendentes destes) entre os aprovados nas faculdades paulistas se justificava pela grande colônia de origem japonesa e pela reconhecida disciplina de seus integrantes, um diferencial importante nesse tipo de concurso. No caso dos piauienses, a boa performance nessas seleções era sempre atribuída à boa educação encontrada nas escolas do Estado. Uma boa educação que o Piauí teve e continua tendo, como bem demonstram colégios como o Dom Barreto e o núcleo de ensino superior de Teresina.
A diferença é que, à exceção da UFPI, a referencia de ensino no Piauí saiu do setor público para o setor privado. Sim, é verdade: já houve um tempo em que a escola pública do Piauí foi referência. Na década de 60 e 70, as escolas públicas piauienses (e não era só o Liceu) mandavam alunos para todo o país com quase absoluta garantia de sucesso.

Quando faço essa reflexão sobre a realidade da escola pública tenho como ponto de partida dois fatos. Primeiro, a pesquisa do IBGE que relacionou as 64 cidades brasileiras sem analfabetismo (quer dizer, não mais que 4% da população não sabe ler). Segundo, a comemoração dos 50 anos do Ginário Felinto Rego, de União.

A pesquisa do IBGE revela que as 64 cidades sem analfabetismo estão em apenas cinco estados, precisamente os cinco estados mais ao sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Rio Grande e Santa Catarina somam 56 das cidades – e, não custa lembrar, são os dois estados com melhor qualidade de vida do país. Também é verdade: educação e qualidade de vida andam juntas. Sempre.

Os números do IBGE devem ser olhados com atenção. Por exemplo: o Brasil tem cerca de 6 mil municípios. Então significa dizer os municipios sem analfabetismo somam ao redor de 1% do total. Uma tragédia que por si só diz muito da realidade social brasileira, e da condenação prévia a que se está submetendo a maioria da população. E essa tragédia é responsabilidade de todos, embora o poder estatal (em todos os níveis) tenha muito quer ver com isso, diante do escândalo que é a escola pública.

Sim, já tivemos escolas públicas de qualidade. E aí vem o Ginásio Felinto Rego. Em seus 50 anos, ocupou lugar de referência por duas décadas ou um pouco mais. Alunos saiam de União para disputar vagas em colégios como o Marista de Fortaleza – cujo seleção à época era um vestibular antecipado – e logravam não apenas passar, mas ficar nas melhores turmas. Em minha casa temos dois exemplos disso.

Qual o segredo do Felinto Rego? Creio, dois.

O primeiro, que a escola pública era vista com outros olhos até a reforma educacional feita pela ditadura no final dos anos 60, implantada nos primeiros anos 70. Segundo, que União contava à época com nomes absolutamente dedicados à formação. Eram muitos: Auri Nery, Maria Rego, Manoel Oliveira, Antonio Leite, “padre” (hoje arcebispo) José, Zé Araújo, Marcos Parente, Concebida Sales, Diva Nery, Pedro Reis, Luci Gomes etc, etc). E tinha além disso um comando, uma diretriz personificada no professor Antônio Rocha – ou simplesmente Dr. Antônio –, diretor do colégio por mais de 20 anos. Como disse Rita Lobão (uma unionense “exilada” na Universidade do Mato Grosso), a propósito do cinquentenário, para as gerações dos anos 60 e 70, o professor Rocha e o Felinto Rego são a mesma coisa.

Quando veio a reforma educacional da ditadura, o professor foi profético: “vão esculhambar com a educação”. Foi o começo do fim para a escola pública, fim que teimava em não começar no Felinto Rego.

Professor magistral tanto de História como de Geografia, Dr. Antônio sempre se destacou pela disciplina. Era e continua sendo um “duro”, ainda que a idade rebaixe o ímpeto e a aposentadoria torne pouco útil tanta autoconfiança. Como educador, sempre adotou um lema seguido à risca: a boa educação começa de casa. E a disciplina com os demais era um pouco mais disciplinar com os filhos – e são muitos: dez. Acho que não há um só que não tenha ouvido a frase: “Rapazinho, prá casa. Três dias de suspensão”.

Além da disciplina, o principal: a mais inteira entrega à educação, buscando ter os melhores quadros, brigando pela qualificação dos professores e as melhores condições de ensino. Uma vez, em sala de aula, o então juiz e professor (depois desembargador) Francisco Gomes dizia: “Dr. Antônio tem mais ciúmes do Ginásio do que de dona Irena [a esposa]”. Um dos filhos do diretor, aluno da matéria, infantilmente achava que ciumes era sinal de amor e balançou a cabeça em desacordo. O juiz, vendo a reação filial, deu uma lição extra: “Tem, sim! Sua mãe é uma santa. E esse Ginásio é a vida de seu pai”.

O aluno atende pelo nome de Fenelon Rocha.

Um filho orgulhoso de União. Muito orgulhoso do Felinto Rego. E um pouco mais orgulhoso que outros filhos da terra, pelo destacado papel desempenhado pelo “Dr. Antônio” na formação de várias gerações de unionenses.

Esta lição do professor Antônio Rocha ainda pode ser aprendida por todos: a escola pública pode (e deve) ser de qualidade. De muita qualidade.


Fenelon Rocha
Jornalista e Prof. da UFPI

Publicado no jornal Diário do Povo em 20 de junho de 2007

Vamos resgatar uma bela história


Antônio Martins da Rocha, ou Professor Antônio Rocha ou simplesmente Dr. Antônio.

Nasceu em União (Piaui) em 27 de agosto de 1923. Passou parte da adolescência em Parnaíba, fez científico em Recife e Odontologia em Salvador.

Voltou para o Piauí e exerceu seu ofício de dentista e - sobretudo - sua arte de ensinar em Floriano, Parnaíba, Buriti dos Lopes, Piracuruca, União, Valença e outra vez União.
Foi professor por onde andou. Mas formou geraçoes, mesmo!, em União. Lá ele ajudou a criar o Ginário Felinto Rego (que dirigiu por mais de 20 anos) e o Colégio de 2º Grau - isso ainda nos anos 70.

Sua referência é esta: professor. Sempre foi um homem da educaçao. E como tal conviveu com muita, muita gente. Com elas construiu muitas histórias, várias delas bem humoradas.

Queria resgatar essa história com você.

Mais que filho, fui seu aluno - dentro e fora da sala de aula.

E gostaria de resgatar essa trajetória que considero tão importante.

Para tanto, espero contar com a colaboração dos ex-alunos do Dr. Antonio.

Espero sua história. Ou sua foto.

Envie para fenelonrocha@globo.com

Cada história (ou foto) será muito bem recebida. E disponibilizada aqui.

Um abração.


Fenelon Rocha

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