sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Felinto Rego, 50 anos


Na década de 70, uma frase tomava conta dos cursinhos pré-vestibular de São Paulo: “quer passar, mate um japonês”. Na mesmo época (e nas duas décadas seguintes), uma frase semelhante podia ser escutada em cidades como Recife ou Campina Grande: “quer passar, dá um chega-prá-lá num piauiense”. A frase em relação aos piauienses também incluía os concursos públicos, sobretudo para cargos como juiz e procurador.

A enorme presença de nipônicos (ou descendentes destes) entre os aprovados nas faculdades paulistas se justificava pela grande colônia de origem japonesa e pela reconhecida disciplina de seus integrantes, um diferencial importante nesse tipo de concurso. No caso dos piauienses, a boa performance nessas seleções era sempre atribuída à boa educação encontrada nas escolas do Estado. Uma boa educação que o Piauí teve e continua tendo, como bem demonstram colégios como o Dom Barreto e o núcleo de ensino superior de Teresina.
A diferença é que, à exceção da UFPI, a referencia de ensino no Piauí saiu do setor público para o setor privado. Sim, é verdade: já houve um tempo em que a escola pública do Piauí foi referência. Na década de 60 e 70, as escolas públicas piauienses (e não era só o Liceu) mandavam alunos para todo o país com quase absoluta garantia de sucesso.

Quando faço essa reflexão sobre a realidade da escola pública tenho como ponto de partida dois fatos. Primeiro, a pesquisa do IBGE que relacionou as 64 cidades brasileiras sem analfabetismo (quer dizer, não mais que 4% da população não sabe ler). Segundo, a comemoração dos 50 anos do Ginário Felinto Rego, de União.

A pesquisa do IBGE revela que as 64 cidades sem analfabetismo estão em apenas cinco estados, precisamente os cinco estados mais ao sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Rio Grande e Santa Catarina somam 56 das cidades – e, não custa lembrar, são os dois estados com melhor qualidade de vida do país. Também é verdade: educação e qualidade de vida andam juntas. Sempre.

Os números do IBGE devem ser olhados com atenção. Por exemplo: o Brasil tem cerca de 6 mil municípios. Então significa dizer os municipios sem analfabetismo somam ao redor de 1% do total. Uma tragédia que por si só diz muito da realidade social brasileira, e da condenação prévia a que se está submetendo a maioria da população. E essa tragédia é responsabilidade de todos, embora o poder estatal (em todos os níveis) tenha muito quer ver com isso, diante do escândalo que é a escola pública.

Sim, já tivemos escolas públicas de qualidade. E aí vem o Ginásio Felinto Rego. Em seus 50 anos, ocupou lugar de referência por duas décadas ou um pouco mais. Alunos saiam de União para disputar vagas em colégios como o Marista de Fortaleza – cujo seleção à época era um vestibular antecipado – e logravam não apenas passar, mas ficar nas melhores turmas. Em minha casa temos dois exemplos disso.

Qual o segredo do Felinto Rego? Creio, dois.

O primeiro, que a escola pública era vista com outros olhos até a reforma educacional feita pela ditadura no final dos anos 60, implantada nos primeiros anos 70. Segundo, que União contava à época com nomes absolutamente dedicados à formação. Eram muitos: Auri Nery, Maria Rego, Manoel Oliveira, Antonio Leite, “padre” (hoje arcebispo) José, Zé Araújo, Marcos Parente, Concebida Sales, Diva Nery, Pedro Reis, Luci Gomes etc, etc). E tinha além disso um comando, uma diretriz personificada no professor Antônio Rocha – ou simplesmente Dr. Antônio –, diretor do colégio por mais de 20 anos. Como disse Rita Lobão (uma unionense “exilada” na Universidade do Mato Grosso), a propósito do cinquentenário, para as gerações dos anos 60 e 70, o professor Rocha e o Felinto Rego são a mesma coisa.

Quando veio a reforma educacional da ditadura, o professor foi profético: “vão esculhambar com a educação”. Foi o começo do fim para a escola pública, fim que teimava em não começar no Felinto Rego.

Professor magistral tanto de História como de Geografia, Dr. Antônio sempre se destacou pela disciplina. Era e continua sendo um “duro”, ainda que a idade rebaixe o ímpeto e a aposentadoria torne pouco útil tanta autoconfiança. Como educador, sempre adotou um lema seguido à risca: a boa educação começa de casa. E a disciplina com os demais era um pouco mais disciplinar com os filhos – e são muitos: dez. Acho que não há um só que não tenha ouvido a frase: “Rapazinho, prá casa. Três dias de suspensão”.

Além da disciplina, o principal: a mais inteira entrega à educação, buscando ter os melhores quadros, brigando pela qualificação dos professores e as melhores condições de ensino. Uma vez, em sala de aula, o então juiz e professor (depois desembargador) Francisco Gomes dizia: “Dr. Antônio tem mais ciúmes do Ginásio do que de dona Irena [a esposa]”. Um dos filhos do diretor, aluno da matéria, infantilmente achava que ciumes era sinal de amor e balançou a cabeça em desacordo. O juiz, vendo a reação filial, deu uma lição extra: “Tem, sim! Sua mãe é uma santa. E esse Ginásio é a vida de seu pai”.

O aluno atende pelo nome de Fenelon Rocha.

Um filho orgulhoso de União. Muito orgulhoso do Felinto Rego. E um pouco mais orgulhoso que outros filhos da terra, pelo destacado papel desempenhado pelo “Dr. Antônio” na formação de várias gerações de unionenses.

Esta lição do professor Antônio Rocha ainda pode ser aprendida por todos: a escola pública pode (e deve) ser de qualidade. De muita qualidade.


Fenelon Rocha
Jornalista e Prof. da UFPI

Publicado no jornal Diário do Povo em 20 de junho de 2007

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