terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Uma mágica para salvar o feiticeiro


Seu Modestino sempre foi festejado por um certo poder espiritual.

Macumbeiro conhecido, rezou em metade dos unionenses e num outro tanto de visitantes que chegavam à cidade para se valer de suas relações privilegiadas com as "entidades".

Mas nem sempre a coisa funciona. E às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro.
Quando isto acontece, o jeito é apelar para algum mágico de plantão.

Foi o que aconteceu nos idos da década de 70. O mágico encontrado foi Dr. Antonio, a quem a família de Seu Modesto apelou na hora do aperto.

A bem da verdade, Antonio Rocha sempre foi um faz-tudo. Odontólogo de formação, agrônomo e professor por paixão, também se fez de médico por imposição das circunstâncias. Por muito tempo, era o único na cidade que tinha alguma formação médica, por conta dos dois anos de Faculdade em que o curso de Odontologia e o de Medicina faziam as mesmas cadeiras – só a partir do terceiro ano é que cursavam as cadeiras específicas dos dentistas. Sem médico na cidade, os doentes batiam à porta do Dr. Antonio, a qualquer hora do dia ou da noite. E assim, costurou rasgos de peixeira, emendou queixo espedaçado por machadada e engessou braços quebrados em todo tipo de estripulias.

Mas nem todos buscavam os conselhos e as receitas do Dr. Antonio. Muitos terminavam nas garrafadas do Seu Modestino. E foi aí quando o feitiço virou contra o feiticeiro.

Dr. Antonio sempre defendeu o trabalho dos macumbeiros. Não que acreditasse nos seus poderes de cura e de realizar "trabalhos" especiais. Simplesmente porque achava que eles podiam curar muitos males que eram produto da própria imaginação dos enfermos. Isto é, as doenças psicossomáticas desapareceriam na hora em que o doente acreditasse que as garrafadas seriam um santo remédio.

— Mais de 90 das doenças são produto da própria mente do doente — dizia e repetia, amparado em pesquisas que viu publicadas em alguma das muitas revistas que devorava.

E se era assim, a crença no poder do macumbeiro era suficiente para produzir a cura. O doente se curava.

Dr. Antonio cursou Odontologia na Bahia e freqüentou os terreiros, nas aulas práticas de um professor que procurava mostrar o aspecto científico da relação entre a entrega religiosa e os efeitos sobre o corpo. Viu muita gente "baiar" até entrar em transe, perdendo os sentidos a ponto de não sentir a pele queimando pela brasa do cigarro que o tal professor empurrava.

Pode-se dizer, Dr. Antonio cultivou uma relação amistosa com os macumbeiros – e dois tiveram terreiros quase ao lado de sua casa, no bairro São João, em União. Um deles, charlatão assumido, não gozava da amizade do professor; era só convívio protocolar. O outro era precisamente Seu Modestino, que fazia seu trabalho sem alarde, dava passe nos crédulos, benzia para afastar olho gordo e receitava gororobas para por fim aos males do corpo. Este era boa-praça e tornara-se seu amigo.

Uma certa tarde chegou a notícia: Seu Modesto estava preso.

Quem levou a notícia foi a esposa do macumbeiro, que nesta época já morava no São Felipe, na estrada que liga União a Teresina. A mulher tinha ido à casa do professor pedir socorro. Em concreto, queria que ele se valesse se sua, digamos, notoriedade e de seu prestígio para libertar o curandeiro das grades da cadeia pública.

Dr. Antonio quis saber os motivos da prisão. Logo tomou conhecimento que Seu Modesto fora denunciado pela família de um cliente, que havia morrido após iniciar tratamento com o macumbeiro.

O professor vestiu a camisa branca de margas compridas e seguiu para a cadeia. Chegou lá cumprimentou o delegado e quis mais detalhes. Foi informado que Modestino era acusado de matar o cliente. Que receitou uma garrafada para curar o doente e acabara por matá-lo. Agora, ali estava o curandeiro entre as grades.

Tranqüilo e sem mudar o tom de voz, Dr. Antonio quis saber:
— Cadê a gororoba?
— Também está presa — disse o delegado, altivo, apontando uma garrafa recheada de pedaços de plantas e um tanto de aguardente.

O professor pediu licença e pegou a garrafa. Conhecia todas as plantas que estavam ali, usadas como recurso medicinal. Havia pedaço de pau d’arco, umas folhas de matruz e um naco de gengibre. Também podia-se ver fragmentos de embaúba, quebra-pedra e até folhas de cidreira. Cada coisa tinha lá sua indicação. Juntas, não se sabe mesmo para que serviam.

Dr. Antonio sacudiu bem a garrafa. Virou uma e outra vez. E então se dirigiu ao policial:

— Me arranje um copo.

O delegado estranhou o pedido. Mas atendeu.

O professor abriu a garrafa e encheu o copo. Tomou tudo de uma talagada só, para espanto do policial.

— Delegado, solte o homem. Se eu morrer, prenda de novo.

Diante do atônito policial, Dr. Antonio completou, exibindo a garrafada:

— Delegado, isso pode até não fazer bem, mas com certeza não faz mal a ninguém.

Alguns minutos depois, Seu Modesto estava retornando para seu terreiro. E Dr. Antonio seguia para casa. Tinha uma certeza: a gororoba não matara ninguém. Apenas não tinha podido fazer o milagre de salvar o cliente do macumbeiro porque, certamente, não tinha uma doença psicossomática, e sim um mal físico que a crença sozinha não podia combater.
.

Um comentário:

  1. E o macumbeiro, agradecido, mandou para o Antônio Rocha uma leitoa assada, inteirinha, daquelas que se coloca tomate na boca. E a dita cuja fez a festa de quase todo mundo lá em cada, menos do nosso irmão mais velho, que já estudava em Fortaleza e se recusou a cometer tamanho sacrilégio. Não sabe o que perdeu!

    Antônio Rocha, júnior

    ResponderExcluir